quinta-feira, 18 de setembro de 2008

LIVRO DAS REPÚBLICAS: PARTE 2: A Universidade e as Repúblicas de estudantes de Coimbra


CAP. 4. A Universidade e as Repúblicas de estudantes de Coimbra - Por Anibal Frias[1]
Introdução

A Universidade de Coimbra é multisecular. Fundada inicialmente em Lisboa no final do século XIII, ela se instala definitivamente em Coimbra no século XVI, depois de alternar-se bastante entre as duas cidades. Desde os primeiros Estatutos de 1308, concedidos a universitas, quer dizer, à corporação dos mestres e dos estudantes, algumas medidas são tomadas para que os estudantes possam alugar suas casas, a título individual ou coletivo, diretamente junto aos proprietários.
Atualmente, alguns autores remontam a origem das repúblicas à Idade Média, levando-se em conta o valor facial dos Estatutos, ainda que essa denominação, repúblicas, seja muito mais recente. Ora, uma história social das repúblicas e dos alojamentos estudantis em geral, faz com que apareça uma série de transformações de ordem social, econômica ou jurídica. Este tipo de habitação é indissociável da evolução da instituição universitária, para além das constantes nominais, "república", "estudante" ou "Universidade". O que está em jogo aqui, não é somente a questão da interpretação – variável – dos textos, e ainda menos do limite entre saber e "não-saber". A razão deve ser procurada em outro lugar. A explicação destes discursos, finalmente anhistóricos e anacrônicos, corresponde a uma outra lógica social munida de sua própria positividade, aquela ligada à invenção das tradições, no sentido que Eric Hobsbawm e Terence Ranger dão a esta expressão
[2]. Estas afirmações realçam as estratégias tradicionalistas contemporâneas que tendem a "fundar", em uma origem temporal tornada "mítica", uma ordem social presente inscrevendo-a na (longa) duração; e, isto, com fins de legitimação e de valorização de práticas, de instituições ou de atores.
Dito isto, as repúblicas de Coimbra são casas estudantis caracterizadas por um modo de vida comunitária, um investimento de seus membros na organização quotidiana e um espírito de fraternidade. Irredutíveis à função de "morar", elas se distinguem de outras residências universitárias mais convencionais. Ainda que existente em outros lugares, tal modelo possui uma singularidade devida às características sociais e históricas da Universidade e às marcas culturais da Academia
[3] de Coimbra, onde as repúblicas se encontram inseridas.
Este quadro abrangente, ao mesmo tempo institucional, territorial e social, se confunde com a Alta
[4], espaço de evolução das repúblicas. Ele se encontra convertido pelo pesquisador em uma escala de observação dessas estruturas e de seus membros. Esta aproximação é completada pelo estudo da vida interna das casas comunitárias já que elas desfrutam de uma grande autonomia.

Origem e características da Universidade de Coimbra
A Universidade de Coimbra é a mais antiga de Portugal, dado que ela foi fundada pelo Rei Dom Dinis, no dia 1o de março de 1290
[5]. Em agosto do mesmo ano, o Papa Nicolau IV confirma esta criação e concede à universitas alguns privilégios: uma jurisdição privativa (Foro acadêmico) assimilada à da Igreja e a licencia ubique docendi, autorização de ensinar em qualquer parte do mundo cristã. Além destes direitos, a autoridade real acrescenta outros ao longo do tempo: a isenção de alguns impostos, das armas e das rondas, uma vestimenta estatutária (de onde descende a atual capa e batina), uma proteção real, um mercado ou ainda uma polícia acadêmica composta de verdeais, e depois de arqueiros após 1839 com o período liberal. A universitas é, na Idade Média, sinônima de societas, de comunitas ou de corporatio. Formando uma realidade social originária do campo do saber e da "educação", ela emerge e se constitui em torno dos séculos XII / XIII. A universitas designa então a "corporação dos mestres e dos estudantes": universitas maestrorum et scolarium. Ela tem seus próprios Estatutos, seu santo padroeiro (São Nicolau), seu "savoir-faire", suas formas de ajuda, suas hierarquias, suas marcas de reconhecimento, (insígnias, selo, vestimenta, latin), seus ritos ou suas formas de sociabilidade. Esta guilda é constituída pelas "pessoas do saber"[6] formando o magisterium, cuja atividade consiste na leitura de auctoritates e, eventualmente, na (re)produção de livros e na escrita – umas atividades tão "técnicas" quanto rituais e sagradas.
Na verdade, o Estudo Geral, segundo a denominação então mais corrente, se implantou em Lisboa. Situado no bairro de Alfama, o ensino é, inicialmente repartido em várias casas
[7] (como em Paris, rua do Fouarre). O Estudo é transferido pela primeira vez para uma das margens do rio Mondego, em Coimbra, em 1308, por causa das rixas opondo freqüentemente os estudantes e a população local. Depois de várias idas-e-voltas entre as duas cidades, a Universidade se instala definitivamente em Coimbra em 1537. O renomado Monastério de Santa Cruz e alguns colégios religiosos dos arredores, construídos por ocasião da transferência definitiva do Estudo, asseguram o alojamento dos clérigos e a transmissão do saber. A partir de 1544, a Universidade adquire uma forma mais institucional ao se transferir para a Alta. No topo desta colina, Lusa-Atenas (comme ela é, por vezes, então chamada) ocupa o palácio arrumado por Dom Manuel I e cedido aos intelectuais por Dom João III. A Primeira República, em 1910, vem colocar um fim de uma vez por todas a esses privilé13Nous l’avons dit, le Conselho de Veteranos (CV) exerce une fonction de gardien de la Praxe académica. Il dispose, pour cela, de moyens de coercition, avec les trupes, ou de la possibilité de faire d’un étudiant un “ caloiro vitalice ”. Il s’agit d’une sorte d’excommunication praxística qui relègue le “ doutor ” insoumis dans l’enfer de la condition de “ futrica Ìcio a grandes reformas no ensino, especialmente o superior, chegando aos Estatutos de 1772 onde se manifesta o espírito das Luzes, racionalista e universalista. Apesar disso, até a véspera da Primeira República, os estudos universitários se fundamentam amplamente nos métodos rotineiro e escolástico.
Desde sua origem, violências e provocações entre as pessoas "da toga" e as pessoas da cidade
[8] (os "burgueses" vivendo de pequenos trabalhos e do artesanato) marcaram a história da Universidade[9]. A explicação não se refere a uma "natureza", aquela de uma "eterna" juventude turbulenta. Ela deve ser, ao contrário, procurada nas condições dos estudos e nas características das populações escolares. Desenraizados, orientados em sua maioria, para o celibato (até o fim do século XV), caracterizado pelo Foro e a tonsura, os estudantes são considerados e tratados como "jovens". Esta qualidade à qual se sobrepõem diferenças sociais, favorece momentos de "alegria"[10], às vezes excessiva, e um estado/etapa transitório conduzindo, normalmente, aqueles que estão na condição/período de "estudante", no sentido de aprendizes, para uma vida de adulto[11]. Reduplicada por uma reclusão institucional ou uma divisão espacial em células (após 1772 a residência na Alta se torna obrigatória), esta situação desenvolve entre os estudantes, formas de amizade e de convivialidade[12]. Uma outra razão, dessa vez estrutural, concerne à existência mesma do Foro. Ele subtrai legalmente os delitos dos escolares[13] à jurisdição "comum", até a sua abolição em 1834 (hoje em dia ainda existe uma certa "tolerência" coletiva para com os "excessos" estudantis).
De 1943 a 1969 sob Salazar, a parte Alta da cidade foi profundamente transformada com a construção de uma Cidade Universitária, com estética monumentalista e alegórica, no estilo clássico e com linhas ortogonais
[14]. Estes trabalhos conduziram à destruição de um patrimônio composto de colégios dos séculos XVI a XVIII, de velhas igrejas, de casas seculares e de ruas da Idade Média, como a rua Larga, onde se concentrava uma abundante sociabilidade estudantil e popular. Os ex-alunos, por intermédio de sua revista de nome revelador e evocador, Rua Larga, puderam protestar, apesar da censura, contra este atentado ao centro histórico da cidade. Uma república atual, que foi forçada a se mudar, bem como mais de 1600 Salatinas (os habitantes da Alta), tem um nome que lembra, simbolicamente, sua oposição às demolições: Bota-Abaixo. O título dado em seguida à sua revista: "Katraka!" e um desenho feito na bandeira da casa, onde se vê um personagem tentando, desesperadamente, conter as colunas que desmoronam, também constituem referências à identidade fundadora. No ano 2002, a Universidade de Coimbra ultrapassou os 22.000 estudantes, dos quais 60% são mulheres, repartidos em oito Faculdades e, desde 1994, dois e logo três lugares, denominados Pólos.

Tradições universitárias

Antes de 1910 (e em alguns casos ainda hoje em dia), práticas e aspectos tradicionais se manifestam em vários registros. O costume atua, a princípio, nos tratos institucionais e nos símbolos professorais: Abertura solene do ano lectivo, faustos ostentatórios do doutorado, porte da borla e do capelo (o chapéu e a toga) ou leituras cerimoniais ex cathedra do "lente", o mestre cujo ensino repousa desde a Idade Media sobre a leitura-comentário de uma "autoridade" (lectio).
As tradições estudantis, chamadas genericamente "Praxe académica" (trotes no Brasil), formam uma outra janela de costumes, misturando rituais, condutas lúdicas, expressões gráficas e transgressões estereotipadas. Elas são feitas de “canulars e de paródias” (partidas e piadas), de trotes ritualísticos exercidos pelos estudantes mais velhos (chamados "doutores" no século XX) sobre os "caloiros" ("calouro" no Brésil), os de primeiro ano. Esta violência, normalmente controlada pelo grupo
[15], é caracterizada por constrangimentos físicos (até o início do século XX, "canelões" e "palmatoadas" na entrada da Universidade: a Porta Férrea) ou psicológicos (pagamento da "patente", "exploração" dos novatos). A isto, é preciso acrescentar os roubos de galinhas na vizinhança por parte dos moradores das repúblicas até os anos 1950 (um afresco mural no Prá-Kys-Tão testemunha este fato), brigas ou desentendimentos relacionados aos "futricas"[16], a população da Baixa não-universitária.
Uma definição limitada da Praxe académica diz respeito ao conjunto de rituais e de jogos administrados pelos "doutores" aos calouros, sobretudo no início do ano lectivo onde acontecem as praxes de curso, numa lógica, normalmente, de integração progressiva dos noviços. Neste caso, a configuração social e lógica da Praxe funciona como um rito de passagem fazendo passar-mudar os indivíduos do mundo comum, exterior e familial, ao mundo académico reservado, com suas regras e suas sociabilidades
[17]. Se fosse agora necessário dar uma definição extensiva da Praxe, ela abrangeria uma multiplicidade de comportamentos e de estatutos hierárquicos, de ritos e cerimônias, de objetos e de insígnias, de períodos onde se misturam as festas, o cerimonial, o carnaval, atividades lúdicas e musicais incluindo a Latada, que acontece em novembro, e a Queima das Fitas, em maio. A Praxe se compõe ainda de uma vestimenta: a capa e batina, com as "maneiras" de usá-la, de grupos unisexos de "doutores", masculinos ou femininos, partindo à "cassa ao calouro" depois da meia-noite na Alta, grupos de cantores e músicos tradicionais (tunas), de serenatas, de grupos de fado, de biografias de ex-alunos e de poemas, de jornais e revistas, de discursos, de episódios engraçados e de histórias, de gritos estereotipados, de uma gíria, de hinos, de emblemas, de brasões, de bandeiras, de cores, de ritmos temporais, de um comportamento (boêmia, irreverências), de lugares e de territórios, de sociabilidades e de "excessos", de personagens típicos e de figuras legendárias, de imagens e de mitos, de elementos modernos e tradicionais...e de saudades. A esta lista aberta, seria preciso acrescentar as repúblicas que possuem, elas também, seus próprios costumes e Estatutos: nome, bandeira, símbolos, grito, hino, apelidos, figuras legendárias, denominações, hierarquia, ritos, sociabilidades, organização rotativa, reuniões de casa, "Conselho de Repúblicas"...
A boêmia literária, poética, teatral ou musical se desenvolveu na segunda metade do século XIX, com Eça de Queiroz, Antero de Quental, Augusto Hilário, ou Antônio Nobre. Ela invadiu os espaços da taberna, das repúblicas, do teatro, da rua ou ainda o Choupal, o Penedo da Saudade ou o Jardim Botânico. Neste contexto ao mesmo tempo estético, cultural e político (onde circulam os textos de Proudhon), a figura do "cábula" se opõe ao estudante sério, o "urso" na gíria estudantil. O Conselho dos Veteranos, se colocando como guardião das tradições, acabará por reificar estes costumes através da redação de Códigos da Praxe. O de 1957 constitui um modelo para os de 1993 e de 2001 que, no geral, o reproduzem quase que identicamente. A esta lista, é preciso acrescentar a Latada, um tipo de algazarra organizado pela primeira vez nos anos 1880 pelas turmas de quarto anos de Direito. Ela volta no dia do "Ponto" em maio, marcando o fim das aulas. Enfim, a paródia do Centenário da Sebenta, em 1899, é reiterado sob a forma do Enterro do Grau em 1905. A Queima das Fitas atual, que acontece em maio, em particular o Cortejo dos quartanistas, repleto de finalistas e de calouros, em deriva.
Uma última "tradição" instituída desde a origem do Estudo Geral é a que associa religião e saber, Igreja e Universidade, com "uma mistura de serviço de Deus e de Minerva
[18] ", segundo a expressão do professor de Matemática, Sidônio Pais, futuro presidente da República. Nestes termos, este republicano critica, em 1904, a obrigação estatutária feita aos universitários da oração ao Espírito Santo e do juramento à Imaculada Conceição. Se a Universidade, esta nova Atenas da Cultura, é essencialmente acessível às elites, em particular em Direito[19] e em Medicina, ela é mais amplamente reservada aos iniciados. É isso que recordam os ritos de iniciação e o isolamento da Alma Mater na "colina sagrada".
O conjunto destas tradições, colocado sobre um poderoso sistema hierárquico (professor/estudante, "doutores" / noviços) e distinto (universitários / futricas), foi tema de contestações por parte dos estudantes e dos professores republicanos, tais como José de Arruela, Homem Cristo (filho), Bernardino Machado ou Teófilo Braga. Estas críticas são renovadas ao longo do século XX, nomeadamente durante a crise académica de 1969 e da Revolução de 1974.
Em 1980 as tradições estudantis foram "restauradas" em Coimbra. Algumas polémicas e, por vezes conflitos, surgiram. Este facto traduziu-se em outros sítios por uma "invenção" de tradições académicas. Entre a influência do prestigioso modelo coimbrão e a revitalização de elementos regionais, elas confirem uma "alma" a Universidades ou Politécnicos recentes e ancoram uma "identidade estudantil" local
[20]. Estes costumes acompanham um movimento geral e mais antigo: o de uma patrimonialização das tradições. Desde o fim do século XIX, o termo "Praxe" aplicado às tradições estudantis, constitui um indício e ao mesmo tempo, uma conseqüência de uma transformação das práticas simbólicas estudantis, como também, da Universidade com o aumento de uma concorrência de estabelecimentos superiores em Lisboa e no Porto[21]. A expressão "Praxe académica" abrange doravente usos e costumes antes dispersos e fracamente codificados.
O conceito de "patrimonialização" nos permite compreender tal fenômeno complexo
[22]. Esta noção articula uma dupla dinâmica global. A primeira recai sobre um ato de legitimação conferindo um valor artístico, histórico, cultural, ideal ou simbólico a uma construção, um objeto, uma prática ou um espaço. A segunda recai sobre uma valorização social de uma certa entidade, reconhecendo-lhe um interesse local, nacional ou global. É necessário acrescentar a este procedimento formal, uma lógica de natureza museológica. Ela consiste em uma política de conservação e em uma "mise en scène" de objetos "culturais" ou "artísticos" destinados a ser representados e contemplados. É ao fim de uma tal operação social, onde se misturam poderosas cargas de sagrado e de crença, que um “patrimônio” é definido e visível. Esta dinâmica determina ao mesmo tempo uma certa maneira de colocá-lo em prática, supondo usos codificados e um olhar estetizante. De mesma forma, ela traz consigo um tipo de administração racional dos "bens" culturais ou materiais. De tal maneira que o "patrimônio" (universitário), bem como as "tradições" (estudantis), não preexistam como fatos empíricos ou históricos, mas são objeto de uma construção social da sociedade presente. São duas modalidades relacionais identificando uma certa ligação – complexa e variável – que a sociedade comporta em consideração a "seu" passado – com sua parcela de seleção, de comemoração e de esquecimento[23].

Das casas estudantis às repúblicas

Os Estatutos da Universidade de Coimbra mais antigos fazem referência a condições de residência dos mestres e dos alunos
[24]. A questão do alojamento estudantil constituiu um problema real tanto em Lisboa quanto em Coimbra. Do século XIV ao início do XVI, esta última cidade permaneceu limitada ao plano demográfico (menos de 5000 habitantes) e espacial uma vez que o habitat foi reagrupado sob as muralhas, estando concentrada desde a porta de Almedina até a Sé Velha e o Castelo.
Desde a bula papal do 8 de agosto de 1290, confirmando o Estudo Geral, ficou estipulado que os donos das casas desocupadas deveriam reservá-las aos "escolares" por um baixo preço fixado, e controlado, por dois universitários e dois burgueses. Uma vez estando a universitas instalada em Coimbra, em 1308, o Rei Dom Dinis reitera esta medida, acrescentando a possibilidade de os estudantes negociarem diretamente com os proprietários a locação ou a compra de um imóvel
[25]. A forma residencial coletiva é bastante difundida na Europa. Às diversas denominações, correspondem diferentes estruturas sociais: domus, hospicium, paedagogium, contubernium, regentia, bursa, aula, hall ou hostel[26]. O alojamento comum, adquire um aspecto particular de acordo com cada caso: nationes (juntando os estudantes de uma mesma zona cultural), collegia, monastérios, ou ainda pupilajes na Espanha (os estudantes de uma mesma faculdade aí se encontram sob as ordens de um "bachiller", mestre dos "pupilos "[27]), bursae, na Alemanha, halls (aulae) e colégios na Inglaterra... Uma outra fórmula, ainda que mais rara no passado, consistia em alugar um quarto particular, com efeito isolante: o estudante coabita com seu professor, antigamente, ou mora "na casa do habitante" com senhorio, hoje em dia em Portugal[28]. Outrora, os cameristae eram acolhidos na casa dos citadinos. Eles são chamados de camaristas na Espanha ou de Martinets em Paris. Em alguns casos, o aluno só passa para partilhar uma refeição com seus companheiros de mesa (comensais), ou então ele é um "convidado pagante", como o portioniste ou o pupilo.
É também um modelo freqüente os escolares que optam por uma casa, dividindo aí a "comida e o teto". Esta vida comunitária não é forçosamente um sinônimo de igualdade: há uma hierarquia, como no exemplo dos pupilajes ou no das nationes. Se estes últimos distinguem o valor dos membros de acordo com sua "qualidade" social, isto não impede que uma convivialidade e ligações de solidariedade se desenvolvam entre eles, ainda mais que, em geral, eles são conterrâneos. Este modus vivendi, fundado no grupo e na partilha, se encontravam ainda recentemente na Alemanha com os Burschenschaften, derivando dos bursae da Idade Média. As "Bolsas" (bolsae) são, além da Idade Média, sociedades estudantis de ajuda mútua garantindo aos seus socios cama e comida, a maneira de uma assistância mutualista fundada sobre uma forte solidariedade "de mesa" e "étnica", a imagem das nationes. Na Alemanha, durante os séculos XVIII e XIX, aparecem corporações estudantis: as Orden e as Landsmannschaften (com recrutamento regional), depois os Korps e as Burschenschaften, mais politisadas. Este último tipo provem das Bolsae, pois a Burse na Alemanha medieval ou, mais tarde, a Börse "designa o sítio onde pessoas vivem com bolsa comum (soldados e estudantes)"
[29]. Os Korps estudantis são corporações que adotam rituais centrados em códigos identitários (apelidos hierárquicos, hinos, cantos, cores), no concurso de consumo de cerveja em tabernas e na honra com a prática do duelo. Na Inglaterra, em Oxford e em Cambridge, os aprendizes intelectuais "lived, in early days, two or three to a room in rented rooms or houses"[30], segundo um modelo difundido em outos lugares, como vimos. Hoje em dia, se as recentes residências universitárias de Coimbra, reúnem, em um mesmo edifício, dezenas de estudantes, rapazes e garotas, elas induzem ao individualismo e ao retiro estudantil. Porém, alguns estudantes combinam de bom grado para irem comer juntas nas cantinas, beber ou festejar o aniversário de um deles, ou simplesmente, para seguirem um mesmo andamento nas aulas. Da mesma forma, uma amizade preexiste algumas vezes, ou se constitui em conseqüência de uma divisão, negociada, de um apartamento ou de uma casa. Mas acontece também, que uma separação venha a por fim a um desentendimento ou a um conflito.
Na Espanha, as posadas reúnem um pequeno número de estudantes funcionando segundo regras estritas impostas e controladas pelo rector. Outras hospederías, datando mais ou menos dos séculos XVI, XVII, são designadas pelo nome genérico de gobernaciones. Elas se caracterizam pela cooptação dos membros, por princípios endógenos e um grau de autonomia elevado. Segundo Margarita Torremocha
[31], "los escolares optaban por alquilar ellos mismos una casa o unos cuartos y [por organizar] su vida doméstica, bien solos o con la ayuda de una o varias mujeres a su servicio".
Esta definição poderia se aplicar à república estudantil. Formas de repúblicas se encontram hoje em dia no Brasil, em Ouro Preto. Em Portugal, elas estão sobretudo presentes em Coimbra
[32]. Daí, elas puderam se difundir para Lisboa ou para o Porto, ainda que suas "tradições" sejam claramente mais restritas de quem em Coimbra. Se for possível identificar traços invariáveis entre os diversos tipos de repúblicas, nacionais e estrangeiras, elas se constituem e evoluem em função da instituição universitária e dos costumes acadêmicos onde elas foram implantadas e do contexto cultural e político da sociedade englobante. Vejamos com mais detalhes as repúblicas da Universidade de Coimbra.

Características das repúblicas

Numa primeira aproximação, as repúblicas de Coimbra são casas comunitárias de estudantes, autônomas e auto-administradas, cujos membros ou sócios são unidos por ligações económicas e afetivas. Se for possível estabelecer uma continuidade histórica entre as casas estudantis e as atuais repúblicas, sempre existe um risco de cair no anacronismo e no a-historicismo. Tudo muda neste assunto, à imagem da Universidade e da sociedade global. O que se desloca, são os tipos de estrutura, seu grau de independência e de institucionalização, os costumes internos, o estatuto dos residentes, as formas de relação, as características do estudante – a começar pelo nome "república" que começa a aparecer nos textos somente no início do século XIX, com a influência do período liberal.
Uma república tem o tamanho de uma casa, às vezes, espaçosa. Ela é habitada por de 6 a 10 pessoas. A este número, é preciso acrescentar de 2 a 5 "comensais" partilhando as refeições. Se existem quartos duplos, os quartos individuais se tornam a norma. Acontece de duas camas dispostas em um mesmo quarto acolherem um novato e um mais antigo. Assim, a adaptação do recém chegado ao espírito da casa e a seus membros é favorecida. Uma casa comporta em geral, além dos quartos, um ou dois banheiros, um cômodo comum para receber as visitas e organizar festas, uma biblioteca e uma cozinha onde as refeições são feitas sobre uma grande mesa. Todas as casas adotaram um modo de gestão autônoma funcionando "a vez" ou por "turnos". Esquematicamente existem tarefas distribuidas por "ministros" (das finanças, etc.), os "semanais" ("kayds" no Prá-Kys-Tão) se ocupando de por a mesa ou de ajudar a cozinheira
[33] e um/a "administrador/a" (chamado "Cherife" no Bota-Abaixo) gerando a alimentação durante um mês. Uma vez por semana, uma ou duas pessoas vão encomendar e receber os alimentos obtidos com uma redução de 50% pelos Serviços Sociais da Universidade, adoptando uma forma cooperativista.
As casas são alugadas a particulares por um preço bem pequeno: entre 5 e 10 contos por mês. Algumas constituíram associações desde os anos 1990. A maioria delas é mista a menos de 25 anos. Em 2002 existem 27 repúblicas, das quais 2 são femininas: a Rosa Luxemburgo, fundada em 1972 e as Marias do Loureiro, datando de 1993. Alguns testemunhos se referem aparentemente, a "repúblicas femininas" que teriam existido desde os anos 1920
[34]. Estes fatos parecem corroborados pelos escritos de uma viajante francesa da mesma época[35]. Se considerarmos alguns detalhes relacionados, como as tarefas rotativas e a autonomia, estas residências se assemelham de fato a uma república. Mas é provável que estas casas funcionem à imagem das repúblicas masculinas, talvez com menos turbulências e bebedeiras. As casas femininas se estruturam por simples mimetismo sem realmente freqüentar as dos garotos. Esta separação se verifica também, na vida acadêmica em geral, uma vez que as estudantes não se vestem de maneira tradicional, com a capa e a batina, e quase não participam dos trotes e da Queima das Fitas até os anos 1950. Na verdade, somente as repúblicas masculinas são reconhecidas e legítimas, e fazem parte das memórias orais e escritas dos antigos. Aliás, uma expressão de Dionysia de Mendonça caminha no mesmo sentido de tal interpretação: "A residência dos Palácios Confusos, a que às vezes chamávamos a nossa ‘República’, como aparece aqui e acolá no nosso ‘Diário’... ". Logo, a denominação "república" não tem um caracter formal, apareçando aqui como ocasional e enquanto "efeito de estilo"; ela se restringe unicamente aos membros, sendo difundida somente sobre um registro escrito, interno e privativo.
A residência estudantil "tradicional" de Coimbra, se caracteriza por uma forma de vida coletiva e por uma comunidade de interesses e sentimentos. O espírito de solidariedade e de fraternidade não impede a presença, antigamente, de uma hierarquia entre os membros e, hoje em dia, de diferenças estatutárias. O título de presidente ou "Mor" (de majus: "maior") marca, até 1969, uma hierarquia respeitada. Ela se fundamenta no "tempo de casa", o qual legitima o exercício de uma autoridade tradicional, à maneira da hierarquia no seio da Praxe Acadêmica ou da Universidade. O critério do "tempo de casa", permite ao Mor escolher seu quarto ou ser talvez mais escutado nas "reuniões de casa"; nos Fantasmas, seu voto em reunião de casa conta mais que o dos outros (mas este é um caso isolado). Sua autoridade, entretanto, tem se tornado mais moral e tem se atenuado. O Mor faz parte dos "elementos efetivos" que são definitivamente aceitados por unanimidade quando acontece um voto de reunião de casa onde funciona uma verdadeira democracia participativa. Após uma discussão com o candidato, "à casa" e um voto de unanimidade por parte de seus "elementos efetivos", o novato fica "a experiência" durante um período que varia de seis meses a um ano. Finalmente o nome de uma república, a "república Spreit-ó-Furo" por exemplo, designa ao mesmo tempo a entidade residencial e a unidade formada por seus habitantes, os elementos a experiência e os efetivos reunidos, com exceção dos comensais.
A estes indivíduos residindo e comendo no que eles consideram como sua casa, é preciso incluir os comensais que partilham unicamente as refeições coletivas. Amigos ou viajantes de passagem encontram facilmente as portas abertas (literalmente até pouco tempo), uma refeição e uma cama: são os "convidados" da mesma forma que os amigos de um elemento da casa, que vieram partilhar uma refeição. A chamada para as refeições se faz através da voz ou de um sino, seguida do anúncio gritado: "à palha (seus animais)!" O último estudante integrado, então "a experiência", é geralmente um "caloiro da casa". Sua designação pode variar: ele é o "menino do povo" para os Bota-Abaixo ou o "homem da palha" para os Palácio da Loucura. Atualmente, o termo "calouro", da mesma forma que os aspectos que lembram a Praxe, pode ser recusado. É o caso das repúblicas Inkas, Marias do Loureiro ou Prá-Kys-Tão
[36]. Se o último integrado se torna igual aos outros (ainda que enquanto neófito, ele "está aqui para aprender e saber escutar" de acordo com a conversa de um Mor), até os anos 1960, ele ocupa o degrau mais baixo da hierarquia interna. Esta posição ingrata o predispõe a assumir as tarefas e a sujeitar-se às afrontas mais ou menos rituais por parte do grupo, não privadas de humor e brincadeira.
Em Coimbra, a palavra "república" tem um sentido genérico. Desde 1948, data da criação do Conselho de Repúblicas (CR)
[37], três tipos de "repúblicas" foram distinguidos, com uma conotação ligeiramente hierárquica. Eles dependem, ainda aí, da antigüidade da casa enquanto república. Trata-se, em ordem crescente, do "solar", da "república" (propriamente dita) e da "real república". Os últimos Estatutos do CR, refeitos em 1986, aboliram a distinção hierárquica entre estas três categorias de casa. Isto quer dizer que, se o solar tem o direito de participar e de votar em um CR, ele não saberia "convocá-lo", diferentemente dos dois outros tipos de casa. Ele pode entretanto, passar estrategicamente por uma casa amiga ou, a fortiori, por sua república "madrinha"[38] afim de tratar de questões e de defender os interesses no que toca ao conjunto das casas ou ainda de tomar coletivamente uma posição social ou política sobre um determinado assunto, como o aumento das propinas ou a lei sobre a depenelização do aborto, nos anos 1990. A atenuação da hierarquia entre estas entidades residenciais é visível, por exemplo, no fato de que algumas repúblicas conservaram seu nome de solar, como os Kapangas. Ao mesmo tempo, a expressão "ao servíçio da Praxe", presente nos primeiros Estatutos do CR, em 1948 (art. 1), desapareceu com o redemoinho contestatório das tradições e das hierarquias (acadêmicas e sociais) em 1969 e, sobretudo, em 1974. A partir desta data é mesmo o conjunto da Praxe acadêmica que está suspenso e, no que concerne às repúblicas, o CR. Esta reação conduziu atualmente, a uma espécie de desprendimento – senão uma oposição – entre a Praxe, e principalmente o Conselho dos Veteranos que a encarna, e o CR.
Os três Códigos da Praxe de Coimbra (1957, 1993, 2001) se referem à república como formadora do "conjunto dos estudantes vivendo em comunidade doméstica". Esta definição é extremamente abrangente, já que existem em Coimbra casas que não são repúblicas "vivendo em comunidade doméstica", como os CowBoys. Por outro lado, os Symbas, ainda que levando o nome de "solar" desde 1962, foi excluído do título de "república" pelo CR por ter sido uma casa praxista em 1969. A definição dos Códigos é, por outro lado, incompleta pois para que uma república exista é preciso que ela seja votada e reconhecida pelo CR, sem necessariamente preencher todas as condições formais, e especialmente a "inauguração oficial", previstas pelo Código da Praxe.
As repúblicas participaram ativamente nos conflitos estudantis de 1962, 1965 e de 1969 sob o Estado Novo. Elas puderam agir enquanto espaços protetores de oposição (Mário Soares fez uma conferência nos Kágados, em 1969), através do jornal O Badalo ou criando uma lista única e unitária. Esta, permitiu aos estudantes ganhar as eleições da Associação dos estudantes (AAC), em 1961, contra a Comissão Administrativa imposta pelo governo. Alberto de Souza Martins ou Celso Cruzeiro
[39], entre outros líderes da contestação de 1969, eram moradores de repúblicas. Entre 1969 e 1974, elas passaram de um praxismo "cultural" a um anti-praxismo que pôde ser algumas vezes, político. Medidas do Estado em 1982 e 1986, conduziram à proteção das repúblicas conferindo-lhes um valor patrimonial[40].
Cada casa possui um nome. A denominação pode brincar com as palavras (Pra-Kys-Tão, Kágados, Bota-Abaixo, Fantasmas, Rás-Te-Parta, etc.), remeter à uma origem geográfica dos membros (Corsários das Ilhas, Solar dos estudantes açoreanos, Kimbo dos Sobas, Farol das Ilhas), se referir à loucura, às bebidas ou aos jogos (Palácio da Loucura, Baco, Bota-Abaixo, Trunfé-Kopos), ao "meio" (Ninho dos Matulões), a valores de virilidade (Galifões), às mulheres (Ay-ó-Linda, Spreit-ó-Furo, Boa-Bay-Ela) ou à cozinha (Rapó-Táxo). A identidade nominal pode ainda provir de um acontecimento histórico ou de um personagem político (5 de Outubro, Rosa Luxemburgo), de uma referência exótica (Inkas) ou, simplesmente, do lugar (Marias do Loureiro, República da Praça, Solar do Kuarenta, Solar do 44).
Todas as repúblicas possuem uma bandeira negra onde são visíveis, em branco, o nome e uma logo-marca inspirada no humor, no espírito anti-Praxe (as Marias ou as Rosas), na bebida, na boémia, na música, nas mulheres, etc. A expressão praxista "Dura Praxis, sed Praxis" é acrescentada em muitas bandeiras. Todas possuem um grito: "E-K-A" para os Kágados, "A-R-R-E", para os Boa-Bay-Ela ou bem "Hó égua!", para os Prá-Kys-Tão...
[41]. Elas se diferenciam igualmente por seu hino. Daremos o dos Boa-Bay-Ela: Estas meninas de agora / Boas lascas à valer / Suspiram de hora a hora / Passam a vida a dizer / Que a malta mais agradável / Desta Coimbra tão bela / É a malta formidável / E piramidável / Da Boa-Bay-Ela. Neste exemplo representativo, vê-se na obra ao mesmo tempo a afirmação da identidade, a valorização da casa e a afirmação de um ethos masculino apontando um período no qual os estudantes (rapazes) eram maioria na Universidade e os únicos a morar em repúblicas. Acrescentemos, uma referência a Coimbra e a uma particularidade da república (cf. "Piramidável").

A produção de ligações e de cultura nas repúblicas: o exemplo dos Kágados

Uma observação participante "do interior" dos Kágados, prolongada por vários anos, demonstra a amplitude das atividades no seio das repúblicas em matéria de sociabilidades e de culturas. A proposta de residência não é o resultado de uma busca pessoal, mas provinha de um convite da casa: demonstrando com isto uma confiança em mim, na qual eu via o sinal de uma "adoção".
Para além de uma união real e sólida entre os membros, zonas de diferenciação e até mesmo de desacordos podem surgir. Os sinais de intimidade entre dois ou três membros, fora das relações amorosas, raramente coabitantes, se notam na troca de números dos celulares, no envio de e-mails ou de mensagens de celular (no período de férias), no fato de se encontrarem em um café depois das refeições feitas em comum, de empreender projetos conjuntamente, de se ajudar mutuamente, ou ainda de convidar um amigo residente para passar um fim de semana "na terra", com sua família. O fato de que as ocasiões de conflito sejam raras, não impede o surgimento de divergências e de discussões às vezes animadas. O momento das refeições ou os cafés são propícios para as conversas coletivas, felizes, espontâneas e diversificadas. Todos os assuntos da vida são abordados, mesmo se as conversas livres se orientam de bom grado sobre as questões políticas e religiosas e no universo da casa. É assim que, por exemplo, o atentado do 11 de setembro de 2001 foi comentado e deu lugar a confrontações de pontos de vista diferentes.
Em consideração aos Kágados, algumas discussões puderam se manifestar a respeito do uso do celular nos espaços comuns (cozinha, sala); "acusações" feitas por um "elemento" contra outros membros e expressas em um espaço semi-público, o café habitualmente freqüentado por todos; ou na decisão a tomar, coletivamente, em consideração aos barulhos noturnos repetidos (devidos a um efeito do álcool) do Mor com, sobretudo, conseqüências na vizinhança queixosa – excessos que resultam em outros danos, a propósito de suas "dívidas" acumuladas na casa ou do abandono dos estudos. É também no nível dos acertos, quer dizer, concretamente, convocando uma "reunião de casa ", que dois membros me participam, ao redor de um copo, de sua intenção de "colocar o problema" da conduta de um terceiro membro que, em plena madrugada e sob o domínio do álcool, se mostrou agressivo para com uma senhora de passagem. A casa serve ainda de unidade de julgamento ou de escala de medida na recusa manifestada por um "jovem" antigo morador diante do anúncio da candidatura a "elemento de casa" da parte de dois comensais que ele julga "imaturos" pois eles são pouco integrados à vida da república e porque "é a primeira geração sem consciência política" o que arrisca de desestabilizar a casa; ou na atitude a tomar acerca da coabitação de um casal formado por dois membros da casa, perante sua presumida ausência nas refeições, nas reuniões, na organização. Esta polêmica é interessante pois ela faz aflorar certas normas implícitas. Uma destas regras de vida comum é a do estado "solteiro" nas repúblicas. Se ela não impede (na verdade ela favorece) relações sexuais esporádicas, e até relações amorosas, ela encoraja pouco, em princípio as uniões coabitantes. Não tanto porque ele vai contra a moral do grupo, mas porque a ligação "matrimonial" acarreta inconvenientes para o andamento da casa. O dever de implicação pessoal no funcionamento da casa ou a necessidade de uma presença efetiva e afetiva, são duas outras regras, informais de fato, mas bastante constrangedoras.
Um estudo minucioso da vida dos Kágados ao longo de um único ano demonstra, por outro lado, a diversidade das atividades sociais, culturais, festivas, rituais, políticas ou esportivas que se desenvolvem em seu interior. Estas manifestações variam, logicamente, de uma casa para outra. Nesse aspecto, a república aqui estudada juntamente com o solar Marias do Loureiro, é fortemente ativa. Talvez porque uma é a mais antiga e a outra é a mais recente (feminina), estas duas afirmam sua posição diante das outras casas, da Universidade e do AAC. As atividades praticadas pelos membros de uma casa ou entre repúblicas
[42] amigas, pensadas e organizadas em comum, são por exemplo sessões de poesia ou de cinema (às vezes temáticas). Encontros esportivos, sardinhadas com os moradores do bairro, sangrias, edições de textos poéticos (Plágio), revistas ou jornais, principalmente sobre a vida de uma república, algumas difundidas pela Internet (O Badalo, Riskos e Kakos, O Galinheiro, O Furinho...). São ainda atividades de todos os tipos que são elaboradas na perspectiva do "centenário", a festa anual comemorando a fundação da casa. Porquê o nome "centenário" ? "Porque dez anos numa república, valem cem anos de vida", segundo reza o ditado. Esta data de aniversário reúne as gerações antigas e atuais em torno de uma refeição pantagruélica (feijoada, carnes, marisco, arroz doce, bolos, vinho ou cerveja), de cantorias e de violões, de histórias e de lembranças, de conversas sem fim, de emoções, de saudades. Os outros "repúblicos" assim como os amigos passam por volta da meia-noite. Cada ano as manifestações se estendem por mais de um mês: exposições de fotografias, desfiles de gigantes e cabeçudos, seções de fado, animações para crianças órfãs, peças de teatro, ligações com associações de caráter recreativo, cultural ou esportivo, "cafés concerto", tais como "Nós e o Zeca" comemorando José Afonso e realizado em colaboração com dois espaços culturais populares : o Ateneu de Coimbra e o Grêmio Operário... Exigindo uma preparação de várias semanas e uma colaboração estreita entre todos, estes eventos contribuem para unir os indivíduos (e os antigos) de uma casa e algumas casas entre si. Eles permitem consolidar as relações com a vizinhança, com a população estudantil, com organismos locais ou com outras cidades (Ansião, Trancoso, Braga, São João da Madeira, Bragança). A esta longa lista, seria preciso acrescentar a produção, quase que sempre circunstanciada, de múltiplos cartazes, desenhos, afrescos, caricaturas[43]...
Uma tal produção cultural, onde prima a informalidade, desfruta de uma fraca visibilidade social, sendo tema somente de breves notícias nos jornais locais. Ela permanece estranhamente ausente das relações universitárias relativas à cultura de Coimbra. Tratando-se da oferta cultural acadêmica, estes estudos se mantêm nas atividades propostas pela AAC. Ora, a expressão cultural das repúblicas é uma das raras, em Coimbra, a provir "espontaneamente" do corpo social (letrado). Nunca completamente dissociada das ocasiões e das ligações sociais que as repúblicas refletem e consolidam, esta criação escapa às categorias dos observadores apressados. Seria somente porque elas desfrutam do registro não-institucional e na implicação dos membros, antes que na centralização das decisões e organização racional de uma certa legitimidade cultural? Nós estamos longe evidentemente, de uma imagem social – "exterior" e sábia – das repúblicas (e mais genericamente da Praxe acadêmica) que, de acordo com a proposição... de um antropólogo local, seriam: "uma mão cheia de nada, só são copos, bêbedos e drogas"...

Um lugar criador : o exemplo dos Kágados

Como acabamos de ver, as repúblicas concentram atividades culturais. Elas são também espaços criativos no plano estético, ainda que, novamente, esta criação viva seja ignorada. A cultura aqui, é entendida ao mesmo tempo no sentido de marcas identitárias e de formas estéticas apreendidas, sinteticamente em sua dinâmica criativa. Precisamente, os arquivos de uma república cristalizam, misturando-os, uma maneira de ser e uma maneira de viver. Cada casa possui seus arquivos, mais ou menos importantes em função da antigüidade da casa, do cuidado tomado com sua preservação ou do grau de furor destrutivo quando da Revolução de 1974.
Por "arquivos", deve-se compreender, por um lado, documentos escritos, gráficos, fotográficos ou sonoros, objetos materiais e imateriais formando uma espécie de depósito inerte, mas cujo sentido objetivado continua sempre questionável; e, por outro lado, a palavra falada, oral e viva, dos antigos, reativada nos reencontros, feitos de lembranças engraçadas e de uma história consagrada sob a forma de "histórias" narrativizadas. Este passado se manifesta no prisma tanto do tempo que passou, propício à saudade, quanto de uma memória partilhada através de experiências vividas constitutivas de uma mesma "geração" ou, para os mais jovens, de referências trazidas, lidas ou escutadas. A parte dos arquivos "endormecidos" é aqui confrontada, no mínimo por alguns destes materiais ou episódios, com a memória viva dos indivíduos. O que retém o sentido que os Kágados conferem ao vivido "em pessoa" ou ainda a uma história dita ou transcrita dependente, para o pesquisador, de dados "frios".
Considerando-se os aspectos informais, ainda que estruturantes, dos Kágados, é possível descobrir sinais identitários e formas expressivas. A análise se focaliza nos arquivos, documentários e memoriais, afim de fazê-los "falar" através das propostas ou dos costumes dos próprios indivíduos.
O primeiro dos elementos identitários não é outro senão o próprio nome "Kágados". Esta designação que remete a uma entidade coletiva representa além disso na vertente da identidade/identificação já que ela atua, sobretudo nas situações formais e escritas (as públicas, reuniões, correspondências...), enquanto termo de referência e de endereço. A república dos Kágados data do 1º de dezembro de 1933; ela foi fundada por estudantes da região do Minho
[44], em conseqüência de uma sisão da república Porvir, fundada quinze anos antes. Na fotografia dos "fundadores", está escrito "cágados"; somente em 1943 (quando do 1º "milionário") que a letra "k", de ar mais sábio e exótico, substitui o "c" de origem. Se retivermos o jogo de palavras libertino (kágado/cagar) e as diversas variações de sentido que o vocábulo recobre, especialmente no que designa um tipo de tartaruga (cágado), ou antes a imagem social deste animal aquático, os membros, atuais ou antigos (os "velhinhos"), se referem a alguém como lento (nos estudos), ou "astuto" (manhoso) e "esperto" (finório) na vida. No quotidiano, toda uma série de termos começando pela letra “c” é reescrita com um "k". Esta letra serve para aproximar do nome da casa, começando pela própria palavra "kasa". Esta grafia circula entre eles próprios, entre iniciados ou diante das outras repúblicas. Ela prolifera nas várias correspondências e todos os tipos de documentos. A "kasa" então não designa uma casa qualquer, mas a "nossa" tornada referencial. A letra "k" se aplica igualmente a outros vocábulos específicos ligados aos Kágados tais como "komensais", "kandidatos", "karaça" ou (velha) "karapaça" em relação ao habitat que é a república. Quando foi necessário encontrar um nome para a revista de poesia dos Kágados, o título foi naturalmente ortografado "Riskos e Kakos". Do mesmo modo, um afresco estudantil datando de 1964, tendo por acaso sobrevivido à tabula rasa do 25 de Abril de 1974 e aos trabalhos efetuados na casa entre 1994 e 1997, representa a "santa ceia". No lugar de Jesus Cristo, reina um "J.K." sacralizado e mítico (no Bota-Abaixo o "Bispo" é um antigo que se tornou "espírito"). Esta grafia identitária não é privada de humor. Ela instaura entre os residentes uma certa distância lúdica em consideração a seus próprios costumes. Sinal de reconhecimento e manifestação afetuosa, ela torna mais sensível uma boa convivência.
Existe uma linguagem relativa às repúblicas ou a algumas delas somente. Como em Ouro Preto, os Kágados possuem sua fala. Esta se limita a algumas palavras ou expressões conhecidas e partilhadas por todos os "membros", no sentido etnometodológico. Nós já assinalamos que nas repúblicas o costume de nomear diferentes "ministros" se estabeleceu há algum tempo. Para os Kágados, estão distintos, de acordo com sua competência pessoal, os "ministros" das finanças, dos assuntos exteriores, do patrimônio artístico ou ainda da cultura e das relações comunitárias. Enfim, uma pequena comunidade estudantil como os Kágados inventa apelidos ou alcunhas, a partir do nome, do físico, do caráter ou ainda de episódios fundadores. Às vezes eles se convertem nas "identidades apenas nominais": Barbas", "Sá Carneiro", "Morcego", "Mimi", "Serginho", "Maria Galega", "M&M’S", "Os três rapozinhos. Do mesmo modo, na mais pura improvisação, por empréstimos ou "alterações", a casa fabrica palavras ou expressões que são também de private jokes: "miau", "bota-lh’azeite", "es uma fera", etc. Estes códigos favorecem uma cumplicidade calorosa e um conhecimento íntimo. Eles são o reflexo de interações quotidianas, de ligações familiares entre membros ou entre amigos saídos da vizinhança e que se encontram todos os dias nos cafés.
As formas expressivas constituem a segunda pista explorada a partir de arquivos, no sentido da definição deste termo. Estas formas expressivas procedem da criação individual ou coletiva, mas sempre num contexte "de conjunto" e específico. Se elas contêm um toque estético, elas se prendem pouco num formalismo de linha apurada, abrindo, ao contrário, para finalidades sociais, lúdicas ou políticas. Elas se indexam então, a um contexto cultural e ocasional, onde a parte informal e recreativa desempenha um papel importante. Nós já pudemos observar que as repúblicas são lugares inventivos, desenvolvendo atividades sociais, gráficas, e culturais. Aqui, reteremos apenas um exemplo de criação. Trata-se de desenhos produzidos, espontaneamente, pela "administração kagadal". Lembramos que o administrador(a)
[45] é o "elemento" que está encarregado, por um mês, da gestão da cozinha, em particular das despesas e das compras de comida e do cálculo mensal das cotas individuais dos "elementos de casa" e dos "comensais" em função do número global de refeições, do "IRAK"[46], dos gastos correntes da casa (água, gás, eletricidade, aluguel) e dos atrasos ou os adiantamentos financeiros eventuais efetuados ao longo do mês decorrido. As somas que daí resultam, são devidas por cada pessoa. Elas são seguidas do nome (ou apelido) respectivo dos beneficiários e são expostas na cozinha para os interessados. Durante os anos 1994-1995, as diferentes "administrações", imitando-se mutuamente, ultrapassaram estes apectos técnicos e funcionais para brincar com a identidade de cada membro, quer ele fosse "elemento de casa", ou "comensal".
De fato, entre os arquivos da casa, se encontram caricaturas, representando cada um dos "moradores" na forma de um animal. A técnica da caricatura tende aqui à "animalização" das pessoas, tornando salientes seus traços e defeitos graças ao aumento de alguns detalhes e a uma cristalização desses "defeitos" levados por uma linha gráfica e textual. Com a ajuda de um ex-aluno, eu compreendi o quanto este grafismo informal, de aparência insignificante, aponta muito melhor que um texto ou uma palavra, certas normas coletivas a respeitar e certos valores "transgredidos" assim figurados. Estes retratos, oscilando entre os cartoons e a "carga", entre a leveza da situação e a crítica, revelando ao mesmo tempo, de uma maneira extremamente sutil e com uma parcela de talento e brincadeira, a personalidade de cada um dos estudantes em favor das relações longas e quotidianas.

O Conselho de Repúblicas

O "Conselho de Repúblicas" (CR) foi criado em 1948 afim de defender os interesses das casas e de estabelecer entre elas "um tratado de concordia e de amizade". Os Kágados assumiram a presidência do CR ao longo de dez anos, na qualidade de república mais antiga.
As reuniões do CR acontecem à noite, quase nunca começando antes da meia-noite, antes da chegada dos representantes de todas as repúblicas ou de todas as delegações. Elas se prolongam até às 7 horas ou mais, depois de uma noite em branco ao mesmo tempo fascinante e cheia de experiências, passada em infinitas conversas e votos, em contestações e em conflitos geralmente controlados. A regra de funcionamento do CR consiste na palavra rotativa entre as casas presentes, através de seus/suas representantes ou delegados/as; algumas casas conferem seu poder de voto a uma outra casa, freqüentemente amiga. A "casa" é aqui a unidade operante e referente. É a residência que convoca aquela que organiza o debate, colocando eventualmente à disposição, comidas e bebidas. Após uma inscrição prévia das casas que pedem a palavra para (contra-)argumentar sobre um determinado ponto ou fazer uma proposta destinada a ser discutida e votada, cada uma se expressa de acordo com a ordem na lista previamente estabelecida, sem nenhuma outra forma de prerrogativa ou de precedência. É quase sempre um/s elemento/s de casa que vai/vão a estas reuniões, mas acontece de um ou dois comensais de confiança serem aí apresentados em nome da entidade que eles encarnam e cujos interesses eles defendem. Nas reuniões mais importantes, onde são discutidos assuntos julgados essenciais, o Mor ou os moradores mais antigos tomam de bom grado a palavra.
Nós poderemos agora descrever um exemplo de reunião do CR que remonta ao ano 2000. No caso analisado, diferentes agrupamentos trataram de um único assunto. Ele se mostrou complexo pelos interesses divergentes entre as casas, pelos procedimentos colocados em prática, pelas polêmicas e as múltiplas questões funcionais ou éticas levantadas. O tema destas reuniões estava relacionado à divisão (com suas modalidades e seus princípios) de uma ajuda financeira de 55.000 contos concedida pelo Estado ao conjunto das repúblicas de Coimbra.
Uma primeira reunião de informação, em dezembro, aconteceu na sede dos Serviços Sociais, em seqüência à convocação de todas as repúblicas por parte de seu diretor. O Dr. Luzio Vaz, depositário da soma monetária, lembrou um princípio geral, ainda que central: são as repúblicas que, coletivamente e entre elas, decidem de uma maneira soberana a respeito do destino a dar ao dinheiro que lhes foi destinado. As reuniões seguintes entre as partes concernentes, revelaram de uma só vez, dificuldades quase insuperáveis. Estas são devidas, em parte, ao egoísmo e ao "protagonismo" de algumas casas (como lhes foi reprovado) diante de um "maná" financeiro inesperado
[47]. Mas elas provêm talvez, sobretudo da necessidade de articular, em prática, valores de igualdade e de solidariedade reguladoras do CR e o princípio, concreto, de eqüidade necessitando de tratar "desigualmente" das casas iguais de acordo com suas necessidades (que elas deviam definir e hierarquizar). Além do mais, a situação se encontra complicada pela regra de voto que funciona com a unanimidade das 27 casas.
O debate logo se polarizou na república Kimbo dos Sobas cuja estrutura corre o risco de desmoronar por causa das falhas perigosas no nível das fundações. Os Kágados insistiram, de início e até o fim, sobre a importância dos valores e dos princípios de igualdade e de solidariedade que subentendem, e condicionam toda ação ou decisão do CR, enquanto órgão que emana e encarna o conjunto das casas. A questão se colocou acerca do realojamento urgente, e provisório, dos membros do Kimbo e da reconstrução de seu habitat, e até da compra de uma outra casa. Num primeiro momento, os interessados deram preferência à reconstrução de sua residência por razões afetivas e de continuidade: os antigos se confundem com as paredes carregadas de história(s) e todos se identificam com o lugar da república
[48]. Antes de chegar, depois de várias seções, mais ou menos a um consenso, sobre a prioridade do Kimbo em termos tanto de urgência como da importância dos trabalhos a realizar, outras repúblicas fizeram valer suas próprias necessidades, vitais ou "de conforto" (estas categorias foram longamente discutidas e criticadas), estimando estar no seu direito de obter sua "parte", precisamente, enquanto repúblicas. Duas outras puderam acusar, de passagem, o Kimbo de "aproveitar" da ocasião da vinda do dinheiro para se mover. A idéia de conceder uma parte dos 55.000 contos ao Kimbo (seja 10.000 contos), paralisou-se em um primeiro momento; era necessário ainda se colocar em acordo sobre os critérios e as modalidades de atribuição da quantidade restante. A escolha do modo de cálculo da divisão do dinheiro assim como da hierarquização das prioridades no que concerne às necessidades ou os trabalhos constituíram outros obstáculos. Estes problemas foram assim, o tema de longas argumentações e de duras negociações conduzindo à formulação de propostas e contrapropostas, antes de submetê-las à aprovação geral. Uma das críticas, formulada nos bastidores, apontava tal modo de cálculo considerado como favorável a certas casas, dentre as quais estranhamente aquela que defendia este mesmo sistema de cálculo - suspeitaram alguns. As casas acabaram por se organizar em torno de duas posições principais. Entre as divergências de idéias formuladas se deixa às vezes adivinhar um certo grau de antagonismo, ou de protagonismo, entre os grupos de casas (um dos presentes falou em "blocos") – o que, por outro lado, não escapou aos próprios atores. A respeito da avaliação das prioridades de cada entidade, donde se seguiria a distribuição do dinheiro ao prorata das necessidades respectivas, decidiram chamar uma comissão exterior de experts (engenheiros civis) que deveria integrar moradores de repúblicas pagos pelo CR. O recurso aos experts não traduz somente, ao que parece, um domínio dos critérios técnico-racionais (visíveis além disso, na seqüência de modos de cálculos complexos ao longo dos debates) e uma dificuldade por parte do CR de solucionar seus próprios problemas: a tomada em conta de normas externas, tendo força decisiva, pode ser vista como um indício do enfraquecimento de sua autonomia e de sua capacidade de domínio sobre seus próprios membros (alguns – novatos, aliás – puderam mesmo levantar a questão da utilidade do CR e de sua capacidade de resolver o problema).
Depois disso, outras propostas surgiram de iniciativas pessoais de duas casas, como a organização de “soirée” musical (Sarau) no Teatro Académico Gil Vicente a fim de recolher fundos para o Kimbo. Enquanto esperavam, os membros do Kimbo, se instalaram provisoriamente em um outro alojamento próximo ao antigo; eles organizaram aí uma festa de instalação para a qual eles convidaram as casas que lhes apoiaram no CR. Como espaço sobretudo funcional, e transitório (os objetos e as lembranças ficaram um tempo na república), eles reorganizaram ali seu quotidiano, até que eles pudessem encontrar uma nova casa suscetível de ser convertida em república.

Conclusão

Enfim, é possível dar uma definição mais completa da república, pelo menos de sua versão coimbrã e atual. Ela pode ser caracterizada a partir de vários critérios convergentes, marcados pelo sinal de ligação (significado aqui pelos radicais "co/com").
Assim uma república de estudantes é uma casa comunitária que se funda numa coabitação espacial de seus membros efetivos e a experiência, masculinos ou femininos, e à qual se integram comensais. Esta copresença de pessoas cooptadas (colegas de curso, conterrâneos, indivíduos recomendados) se prolonga sobre uma linha geracional: os "antigos". Ela favorece uma multiplicidade de interações, individuais ou de grupo e uma forma de cooperação, participativa e rotativa. Esta cooperação econômica se duplica sobretudo, com um estilo de vida identificado a um companheirismo convivial. Às ligações de reciprocidade e a uma ética de confiança que unem os membros entre si, acrescenta-se um sentimento de pertença a uma mesma casa. Esta é constitutiva de uma unicidade intra e inter-geracional. As repúblicas estão conectadas entre si pelo viés (quase-institucional) do Conselho de Repúblicas e, ordinariamente por relações mútuas, de natureza amical, intelectual ou cultural.
Uma ilusão, socialmente bem fundamentada, faz remontar as repúblicas a uma época retrógrada. A mesma lógica, misturando crenças e representações coletivas, considera a Universidade atual como uma instituição "fundada por Dom Dinis". Estes mitos, conservados, são sem dúvida providos de uma razão e de uma eficácia. Eles repousam na aparência de um continuum material (a república ou a Universidade) e textual (arquivos da casa ou Estatutos da Universidade). A reativação de histórias e a conservação de uma memória coletiva unem os moradores de uma mesma república. Além disso, a domus universitaria que é a Universidade, é sinônimo de Alma Mater
[49] tanto para os estudantes quanto para os professores, da qual se consideram afetuosamente, os filhos. A Praxe académica também, apesar de suas formas transgressoras, lúdicas ou paródicas é, ela própria, filha da Universidade.


[1] Doutorando pela Universidade de Paris X Nanterre. Bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Portugal; Groupe Anthropologie du Portugal, MSH, Paris. [afrias@msh-paris.fr]. Agradeço a Otávio Luiz Machado pela revisão do texto e as tradutoras do texto francês, Raíssa Palma de Souza Silva e Sílvia de Oliveira Pena.
[2] Eric Hobsbawm et Terence Ranger, The Invention of Tradition, Oxford, Blackwell, 1983.
[3] As palavras "Universidade" e "Academia" são freqüentemente empregadas como sinônimos; apesar disso, a segunda remete antes à vida social e cultural estudantil, organizada localmente em torno de uma associação, tal como a Associação Acadêmica de Coimbra (AAC).
[4] Sobre a Alta académica como espaço ritual e sensível, ver nossos estudos: Anibal Frias, "Espace rituel et territorialité sonore à l’Université de Coimbra (Portugal) ", Abel Kouvouama e Marie-Caroline Vanbremeersch (coords.), Lisières et espaces sensibles, Paris, L’Harmattan, 2002; e "Une introduction à la ville sensible", Recherches en Anthropologie au Portugal, MSH, Paris, n° 7, 2001, pp. 11-36.
[5] Se a data de 1290 se impôs com a descoberta, em 1912, do "documento precioso", a saber o diploma de fundação da Universidade, a interpretação de seu conteúdo conduziu Rómulo de Carvalho a preferir o ano de 1288, data da "súplica" endereçada por vários prelados ao papa (História do ensino em Portugal, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 46-51, especialmente p. 49 e nota 13).
[6] Jacques Verger, Les gens du savoir en Europe à la fin du Moyen Age, Paris, PUF, 1997.
[7] Ver Mário Alberto Nunes Costa, Reflexão acerca dos locais ducentistas atribuídos ao Estudo Geral, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1991.
[8] Os historiadores anglo-saxões resumam tal oposição pela expressão: Gown and Town.
[9] Para uma antropologia histórica da violência estudantil, ver Anibal Frias, "Les traditions étudiantes au Portugal et en France et leurs critiques", Actas do Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia, dezembro de 1999 (a sair).
[10] Indicamos também, que "jovem" está menos ligado à idade (biológica) que a uma condição social determinada; o mesmo que "alegria" pertence menos à ordem do sentimento, interior e subjetivo, que a uma forma de expressão social. Estas categorias semânticas são variáveis no plano histórico, social e cultural. Na Idade Média, por exemplo, "jovem" e "alegria" estão ligados como o confirma sua etimologia: juven (juventude) e joi, joven (turbulências, divertimentos). Dirigir-se a Georges Duby, Mâle Moyen Age, Paris, Flammarion, 1988, pp. 89, 94 e 100.
[11] A propósito do espaço / tempo escolar como "heterotopia" (Foucault), orientada nos aprendizados ao mesmo tempo técnicos e sociais e nos exercícios ascéticos conduzindo a um corte social, ritualizado, com o mundo comum e ordinário (lembrada pela "skholè" = lazeres e escola), encontrar-se-á desenvolvimentos em nosso Mestrado: Anibal Frias, Les traditions étudiantes au Portugal, Universidade de Paris X Nanterre, 1992.
[12]Sobre a amizade escolar na Idade Média, ver Maurice Aymard, "Amitié et convivialité", Philippe Ariès e Georges Duby (éds.), Histoire de la vie privée, t. III, Paris, Armand Colin, 1986, pp. 490-497.
[13] O termo "escolares", utilizado em seu sentido genérico remete tanto ao reitor e ao chanceler, aos mestres e aos estudantes, quanto aos "oficiais" acadêmicos (bedel, procuradores, etc.), aos servidores dos letrados e os "subordinados" ("suppôts"): os artesãos trabalhando para a Universidade. O todo formador mais propriamente da universitas.
[14] Cf. Anibal Frias, " ’Patrimonialização’ da Alta e da Praxe académica de Coimbra", Atas do IV Congresso Português de Sociologia, Oeiras, Celta, 2002 (em CDRom). Sobre as demolições da Alta histórica conduzindo à construção da Cidade Universitária sob Salazar, ver Nuno Rosmaninho, O princípio de uma "revolução urbanística". Os programas da cidade universitária de Coimbra (1934-1940), Coimbra, Minerva Editora, 1996.
[15] Anibal Frias, "Traditions étudiantes et violence", Tam Tam, Journal des ethnologues, Université de Picardie Jules Verne, n° 3, março de 1998, pp. 6-11.
[16] A palavra vem do francês foutriquet, designando uma pessoa de baixa condição; ela mesmo é formada a partir de foutre: esperma.
[17] Sobre a Praxe académica como um ritual de passagem,poderemos ler em nosso artigo: "La Praxe dos caloiros: un rite de passage", Recherches en Anthropologie au Portugal, n° 5, 1998, pp. 11-39.
[18] O emblema primitivo do selo da universitas é a Sapientia bíblica; ela é substituída em seguida por uma outra figura, de natureza alegórica: a deusa Minerva (Manuel Augusto Rodrigues, Chronologia Historiae Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1988, p. 27).
[19] Ver Maria Eduarda Cruzeiro, "Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional", Análise Social, vol. XV (60), 4°, 1979, pp. 795-838.
[20] Estas tradições, amplamente folklorizadas, desenrolham estratégias identitárias. Cf. Anibal Frias, "Le bizutage au Portugal. Hiérarchies sociales et stratégies identitaires", Marie-Caroline Vanbremeersch (coord.), De l’autre côté du social. Cultures-Représentations-Identités, Paris, L’Harmattan, 1998, pp. 29-67.
[21] Maria Eduarda Cruzeiro, "Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional", art. cit.
[22] Sobre esta noção, ver Anibal Frias, " ’Patrimonialização’ da Alta e da Praxe académica de Coimbra", Actas do IV Congresso da Associação Portuguesa de Sociologia, Oeiras, Celta (em CDRom), art. cit.
[23] A patrimonialização das tradições letradas se encontra reforçada pela multiplicação, há mais de um século, de autobiografias de ex-alunos de Coimbra (das quais a mais conhecida é Trindade Coelho: In Illo Tempore. Estudantes, lentes e futricas, Portugália Editora, Lisbonne, 1902) e por uma objetivação dos costumes fazendo "objetos" materiais e simbólicos recortados do vivido ordinário, representados nos discursos, nos Códigos e nas "mises en scènes", e até nas imagens que os turistas se empenham em comprar. Cf Anibal Frias et Paulo Peixoto, "O reencantamento da cidade? Modes e efeitos da estetização do património urbano em Coimbra", Actas do colóquio de Porto, setembro de 2001 (a sair).
[24] Alguns mestres e estudantes optam pelo "Grand Tour" espécie de companheirismo intelectual (Dominique Julia e Jacques Revel, Les Universités européennes du XVIe au XVIIIe siècle. Histoire des populations étudiantes, Paris, EHESS, tome 2, 1989, p. 86). Esta perigrinação acadêmica, que se prolongará até o século XVIII, conduz as pessoas do estudo em direção às Universidades estrangeiras. Os Portugueses frequentam sobretudo, Salamanca, Paris e Toulouse.
[25] Maria Teresa Nobre Veloso, "O quotidiano da Academia", AA.VV. História da Universidade em Portugal, I volume, tomo I (1290-1536), Universidade de Coimbra/Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 136-137.
[26] Rainer Christoph Schwinges, "Formação dos estudantes e vida estudantil", Hilde de Ridder-Symoens (coord.), Uma história da Universidade na Europa, vol. I: As Universidades na Idade Média, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1996, p. 217. Sobre a moradia estudantil, dirigir-se igualmente a Léo Moulin, La vie des étudiants au Moyen Age, Paris, Albin Michel, 1991, pp. 21-31. Para Paris, ver Simone Roux, La rive gauche des escholiers (XVe siècle), Paris, Editions Christian, 1992.
[27] Margarita Torremocha, La vida estudiantil en el Antiguo Régimen, Alianza Editorial, Madrid, 1998, pp. 41-42. Notemos que pupilo, pupille em francês ou pupil em inglês, vêm de um termo latino que designa o aluno; o vocábulo "bachiler" (que deu bacharel ou bachelier em francês) remete à velha palavra bacalaureus que servia para designar um grau de nobreza: "bas chevalier" (baixo cavaleiro).
[28]A relação entre o estudante (sobretudo a estudante), e seu senhorio é frequentemente cortez, misturando independência e respeito recíproco da intimidade, podendo desencadear uma verdadeira relação de confiança. Neste caso, esta relação favorece divisões de espaços, de serviços ou de palavras e, para o estudante, a possibilidade de reencontrar um espírito familiar. Acontece que, às vezes, uma desconfiança se instala.
[29] Gilbert Gillot, "Rites bachiques dans les corporations allemandes au XIXe siècle", Martin Aurell, Olivier Dumoulin e Françoise Thelamon (coords.), La sociabilité à table. Commensalité et convivialité à travers les âges, Rouen, PUR, 1992, p. 109 note 1.
[30] Elisabeth Leedham-Green, A concise history of the University of Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 26. Este modelo deve ter emigrado para os Estados-Unidos sob a forma contemporânea das fraternities e sororities onde se desenvolveram costumes, especialmente denominações identitárias das casas, dos apelidos dos membros, e das amizades fundando em seguida, fortes ligações de solidariedade. Como se verifica, no mais, a respeito de todos os corpos, das "instituições totais" (no sentido de Goffman) e outras sociedades secretas.
[31] Margarita Torremocha, La vida estudiantil en el Antiguo Régimen, art. cit., p. 42.
[32] Cf. Anibal Frias, "Les Repúblicas d’étudiants à Coimbra", Latitudes, n° 14, maio de 2002, pp. 41-49.
[33] Algumas repúblicas não têm cozinheira (chamada "cumadre" em Ouro Preto), seja por opção (as Marias, incluindo os elementos efectivos e a experiência, cozinham em turnos de uma semana), seja para favorecer uma maior implicação dos membros na casa e fazer economia (Prá-Kys-Tão, Ninho dos Matulões), seja porque problemas financeiros passageiros impedem o pagamento do salário da cozinheira (Corsários, 44).
[34] Dionysia Camões de Mendonça, "Residências Independentes para Universitárias: 1920-1974", Boletim da AAEC, n° 14, junho de 1984, pp. 55-63.
[35] Lily Jean-Javal, Sous le charme du Portugal, Paris, Plon, 1931, pp. 155-158.
[36] Durante a Queima das Fitas, em maio 2002, estas duas últimas casas colocaram, na parte exterior, as mensagens respectivas seguintes: "Pensa, logo não praxes" e "República Anti-Praxe".
[37] Sobre o Conselho de Repúblicas, cf. infra.
[38] No momento do projeto de lei sobre a depenalização do aborto em Portugal, em 1998, as Marias puderam assim convocar um CR graças ao apoio de seu vizinho e padrinho, a Baco. Indicamos que o apadrinhamento entre casas provém do fato que, para passar à solar e depois a república, une república reconhecida "apresenta" a casa candidata na ocasião de um CR. Tal medida reforça – ou tece – ligações feitas de ajudas mútuas, de visitas recíprocas e, eventualmente de relações amorosas.
[39] O autor escreveu a única obra existente sobre o assunto: Coimbra 1969, Porto, Edições Afrontamento, 1989.
[40] Sobre esta questão, ver Anibal Frias, "Patrimoine et traditions étudiantes à Coimbra (Portugal): entre art et culture", Jean-Olivier Majastre e Alain Pessin (dir.), Vers une sociologie des œuvres, tome I, Paris, L’Harmattan, 2001, pp. 425-446.
[41] O estilo e ritmo destes gritos derivam, sem dúvida, do grito académico national: "F-R-A", servindo de modelo para outros. Eis aqui, por extenso o grito dos Kágados: K...A...KA / K...E...KE / K...I...KI / K...O...KO / K...U...KU / Ká...ga...dos (3 vezes) / Aguenta o gado.
[42] As ocasiões de reunir todas ou a maior parte das repúblicas estão a cada vez menos freqüentes: o CR, no dia da primavera reúne na rua da Matemática, 7 / 8 das casa situaadas nas proximidades; há alguns anos a "Semana das repúblicas" é um momento que instiga os encontros esportivos e culturais.
[43] O registro das expressões estéticas estudantis faz parte de uma cultura acadêmica; certos elementos, como os graffiti, os afrescos e os cartazes constituem indicadores ao mesmo tempo dos valores políticos destinados à visão e ações coletivas projetadas nas paredes de um território. Sobre estes aspectos, consultar Anibal Frias e Paulo Peixoto: "Esthétiques urbaines et jeux d'échelles. Expressions graphiques édudiantes et images du patrimoine à l’Université de Coimbra", Oficina do Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, juin, n° 162, 2001.
[44] Esta origem se reflete no hino da casa: Sou do Minho / Sou do Minho / Sou do Minho Litoral / Quem não conhece o Minho / Não conhece Portugal.
[45] Ao fim do século XIX, ele é chamado de "bolsa". Deve-se reconhecer neste termo uma referência à bursa que, na Idade Média, designava ao mesmo tempo o estudante "bolsista" e um tipo de alojamento "econômico"?
[46] O "Irak" designa o Imposto Revolucionário da Alimentação Kagadal. Trata-se de uma parcela fixada – évolutiva – pagada por cada elemento de casa e comensal, e cuja soma pode ser superior ao salário pago à cozinheira, cujo montante em 2001 era de 68 contos.
[47] Observamos de passagem que quando o Estado, em duas retomadas (1991 e 1995), concedeu às repúblicas uma outra grande soma em dinheiro (15 000 + 50 000 contos) que serviu para a restauração de algumas casas bastante deterioradas, como a dos Kágados ou a dos Rás-Te-Parta, isso foi motivo de polêmica. Estas casas, por terem ousado receber dinheiro do Estado, foram chamadas de "vendidas". Nada parecido aconteceu em 2000/2001. É possível enumerar algumas das razões: uma vetustez no aumento de casas necessitando de urgência nos trabalhos; um meio estudantil globalmente menos politizado hoje em dia, uma abertura relativa das casas ainda que ciumentas de sua autonomia material e de sua independência espiritual e quase territorial.
[48] Um dos moradores mais idosos do Kimbo, depois da mudança provisória, ficou sozinho na casa, por razões afetivas. A mesma situação aconteceu alguns anos antes na Kágados uma vez que, a um dado momento restava apenas um elemento em permanência, fauta de novos recrutamentos, sem dúvida, mas também por "resistência" diante da ausência de ajudas institucionais e para não abandonar "a velha karapaça". Quando a república dos Kágados se tornou inabitável com os anos, e sobretudo em conseqüência de chuvas contínuas se infiltrando nas paredes até as fundações, provocando até o desmoronamento de uma parte do telhado e do teto do banheiro no início do ano 1983, os Kágados unânimes, através da voz de seu Mor, declararam em um jornal: “ não sairemos, mesmo que [a casa] caia...se cair será conosco lá dentro porque recusámo-nos a abandonar o que nos pertence e pertenceu a tantas gerações de estudantes ”.
[49] Domus universitaria significa casa universitária e Alma Mater, Mãe [sustentadora] da Alma. A primeira expressão surgiu em uma carta coletiva dos estudantes de Coimbra, datada de abril de 1925 (apud Joaquim Ferreira Gomes, A Universidade de Coimbra durante a Primeira República (1910-1926), Lisboa, Instituto de Inovação Educacional, 1990, p. 420).

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