quinta-feira, 18 de setembro de 2008

LIVRO DAS REPÚBLICAS: PARTE 2: REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO ESTUDANTIL


CAP.1. REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO ESTUDANTIL - POR Michel Thiollent[1]

RESUMO
Tomando a vida em república como tema de partida, este artigo aborda aspectos da condição estudantil que dizem respeito à transição da adolescência para a idade adulta, à aprendizagem social e cultural fora das salas de aula, à percepção das mudanças que ocorrem na participação política dos jovens na sociedade. Também é discutida a questão do individualismo e dos valores de solidariedade no que se refere aos comportamentos dos estudantes e às possibilidades de expressão. Indaga-se sobre as condições de criação de formas de consciência, relacionamentos, tipos de trabalho intelectual ou de expressão política, cultural ou artística, por parte da nova geração estudantil, no atual contexto das crises e rápidas evoluções da sociedade. Sugere-se, em conclusão, que o espaço de liberdade de expressão de que dispõem os estudantes universitários na organização comunitária das repúblicas poderia ser mais bem aproveitado e fortalecido por meio de uma mais efetiva inserção na cultura local.

Introdução

Os organizadores do projeto de pesquisa sobre a história das repúblicas de Ouro Preto me convidaram para preparar um artigo sobre questões relacionadas com o modo de vida e as atividades estudantis na sociedade. O convite foi motivado por um artigo sobre a crise de 1968, no qual retratei alguns aspectos do contexto da vida intelectual que afetam os comportamentos ao longo dos anos (Thiollent, 1998). Eu não estava convicto de que um artigo baseado nessa experiência passada pudesse interessar um público jovem para discutir modos de vida e desafios intelectuais de hoje no Brasil. Todavia, conseguiram convencer-me de que, de fato, haveria uma possível contribuição, derivada da experiência acumulada e do recuo ao passado. Aceitei, então, a proposta de formular e agrupar algumas reflexões sobre a referida temática, deixando claro que se trata apenas de uma indagação, com perguntas não respondidas, e não de resultados de uma pesquisa sistematizada.

Embora não seja um grupo social homogêneo, os estudantes universitários vivem uma condição social marcada pelo fato de estarem em uma situação transitória de aprendizagem, que, supostamente, lhes possibilitará, em proporção reduzida pela competição, o acesso a determinadas profissões qualificadas e posições sociais valorizadas. Tal condição remete a um conjunto de relacionamentos (origens de classe, vínculos familiares, status, renda, estilo de vida, tipo de moradia, hábitos de consumo, etc.) no qual se firmam o caráter psicológico, o gosto cultural, a ética, a ideologia política, etc. O modo de vida associado às repúblicas cria um ambiente cultural específico para os estudantes, no qual esses relacionamentos se configuram.

Neste artigo, serão abordados aspectos da condição estudantil que dizem respeito à transição da adolescência para a idade adulta, à aprendizagem social e cultural fora das salas de aula, à percepção das mudanças que ocorrem na participação política dos jovens na sociedade. Também serão discutidos o individualismo e os valores de solidariedade no que se refere aos comportamentos dos estudantes e às possibilidades de livre expressão. Supõe-se que tais questões fazem sentido para os estudantes no contexto da vida coletiva das repúblicas.




Abrindo o círculo

Tomando a vida em república como tema de partida, imagino que o caráter coletivo desse tipo de experiência seja muito mais que uma simples questão de moradia. Essa forma de vida coletiva constitui uma experiência de estudantes, muitos deles recém-saídos da adolescência. Encontram-se pela primeira vez fora do círculo familiar, dentro de um espaço coletivo em que as regras de conduta são diferentes, o que propicia vivências diferenciadas, em situação transitória, levando ao ingresso na vida adulta.

Nesse período de transição, a vida dos estudantes é marcada, de um lado, pelo distanciamento da família, especialmente para aqueles que vêm de outras cidades ou estados, e, por outro lado, pela descoberta de novos mundos em matéria de conhecimento, diferentes da experiência escolar anterior e associados às profissões ou especializações escolhidas. Pode-se acrescentar que esse período de vida é também objeto de transformações nos planos afetivo e sexual.

É conhecido o fato que, em março de 1968, nos alojamentos da Universidade de Paris-Nanterre, houve atritos entre estudantes e administração por causa do regimento que proibia a livre circulação dos moços e moças fora de suas respectivas áreas residenciais. Alguns analistas dos acontecimentos de maio atribuem a esse fato um papel importante no desencadeamento da revolta anti-autoritária.

Desde os anos 60, a moradia universitária se tornou um problema social e político e foi objeto de estudos sociológicas. Segundo Seymour M. Lipset (1968), sobretudo em países latinos da Europa, a discussão extra-curricular nos cafés, ou nas residências universitárias, teria sido favorável ao surgimento do espirito de revolta. Naquela época, as residências universitárias, os alojamentos e as repúblicas foram considerados como locais de intensa politização, o que originou, em alguns países como o Brasil, uma política de seu esvaziamento e, até, de fechamento.

Aquém da politização, no plano psicológico, a transição da adolescência à idade adulta, algumas vezes, é vivida de modo bastante angustiante, traumático. Isso foi analisado por Georges Lapassade (1963) e vários outros. Tal transição gera problemas afetivos que podem levar certos alunos a crises depressivas, esquizofrênicas e, até, ao suicídio. É conhecido o fato que, especialmente em campi do hemisfério norte, o número de suicídios de estudantes é muito alto.

Uma hipótese, que talvez mereça ser objeto de investigação, consiste em supor que, no Brasil, o lado festivo da vida em república teria o efeito de reduzir a ansiedade, o que explicaria a minimização dos problemas de entrada na vida adulta e a ausência de suicídios.

Em termos de política de mudança e melhorias, um possível objetivo seria o de restituir o conteúdo cultural e político à residência universitária em geral e à republica, em particular, fazendo delas um local de socialização, de amparo psicológico, de aprendizado da vida cotidiana, de troca de experiências e informações, de liberdade de expressão, etc. Esse tipo de objetivo talvez seja mais acessível em repúblicas que em grandes alojamentos, onde a situação é despersonalizada.





Aprendendo fora das salas de aula


Na vida universitária, sabe-se que o que aprendem os alunos não se limita aos conteúdos difundidos em salas de aula, laboratórios, manuais e apostilas. Boa parte da experiência, em termos de sabedoria, consciência política, gosto cultural e valores, é adquirida de modo extra-curricular, nas conversas informais com colegas, nos bares, nas festas e, em caso de moradia coletiva, nos alojamentos ou repúblicas. Além disso, a participação em diretórios acadêmicos, movimentos políticos ou culturais é geralmente fonte de uma rica aprendizagem.

No contexto brasileiro, a pesquisa social e histórica para o resgate da memória das repúblicas pode mostrar as possibilidades de aprendizagem extra-curricular, relacionadas com a cultura local, a vida coletiva e os movimentos políticos. Trata-se de um espaço de socialização no qual se desenvolvem relacionamentos informais e que, em alguns casos, favorecem o trabalho intelectual sob forma de círculos de estudos, de grupos de teatro ou de criação artística. Pode haver compartilhamento de leituras, debates, filmes, etc.

A vida em república possui aspectos festivos e aspectos conscientizadores nos planos cultural e político. Em conjuntura de escassez de alternativas políticas e de formas de expressão cultural autônoma, será que os estudantes se retraem, ou ainda, sobrevalorizam o aspecto festivo em detrimento do aspecto mais intelectualizado?

O tempo que passa

Nos anos 60, um estudante de vinte anos tinha uma imagem da Segunda Guerra Mundial e de seus combatentes como se fossem fato e personagens de outro século. Hoje, em 2000, um aluno de vinte anos deve imaginar as guerras dos anos 60 e seus remanescentes como sendo de remota época. A percepção do tempo dilata os intervalos que existem entre gerações e, com isso, envelhecem aceleradamente fatos e personagens. Reciprocamente, os adultos que foram jovens nos 40 não entendiam os estudantes dos anos 60, e os que foram jovens nos anos 60 estranham os dos anos 2000.

Talvez seja mera visão distorcida de gerações passadas, mas ouve-se dizer que os jovens de hoje são diferentes, de mentalidade programada pela televisão, video-games e computadores, e de limitada cultura geral.

Em uma perspectiva de simples adaptação ao mercado de trabalho, as empresas que selecionam estudantes para trainees se queixam do despreparo da grande maioria. Segundo Colombini, faltam domínio de língua portuguesa e línguas estrangeiras, cultura geral, informações sobre a atualidade, espírito crítico. Até mesmo o domínio da informática é limitado: “os que têm Internet em casa sabem como trocar mensagens ou buscar sites de bandas de rock, mas estão longe de ter qualquer entendimento sobre a utilidade da rede para os negócios ou para carreira” (Colombini, 2000).

Em uma perspectiva mais política, observa-se o desconhecimento das doutrinas presentes ou passadas em matéria de política e filosofia e dos regimes ou conflitos políticos existentes no mundo. Os jovens não lêem mais como no passado volumosos livros sobre marxismo e teorias críticas, que eram estudados de modo extra-curricular em função da mobilização então existente e dos objetivos de transformação social.

O paradoxo da chamada “sociedade da informação” é que, apesar das dezenas de canais de televisão, dos milhares de livros, enciclopédias, revistas de todo tipo, e apesar dos CD-ROM e das redes de informação da Internet, o nível efetivo de informação da grande maioria do público alfabetizado e, até mesmo, cursando o ensino superior, torna-se cada vez mais limitado. Uma possível explicação passa pela desmobilização dos jovens, pela falta de objetivos específicos para algum tipo de ação ou de expressão na sociedade.

Todavia, até mesmo entre os jovens mais mobilizados, os conhecimentos e informações também parecem limitados. Com base em uma pesquisa de campo realizada em Santa Catarina, sobre a militância dos jovens da década de 90, Janice Tirelli Ponte de Sousa observa que: “nossos entrevistados demonstram pouca informação sobre as gerações militantes do passado, ainda que recente, e, apesar da militância, pouco sabem sobre as lutas políticas históricas, quer de seu partido, quer de outros movimentos sociais significativos” (Sousa, 1999:173).

Para evitar comparações apenas retrospectivas e unilaterais, deveríamos questionar o presente: que conhecimentos ou habilidades sociais de tipo novo os jovens são portadores? Certamente seus relacionamentos, percepções ou formas de expressão possuem sinais de futuro e uma riqueza que os antigos não enxergam.

Um outro aspecto do tempo que passa e que nos induz a um certo relativismo é a própria trajetória dos estudantes quando “crescem” e se tornam pessoas maduras.

Em muitos países, inclusive o Brasil, estudantes e jovens professores que foram críticos ou até revolucionários em décadas passadas, hoje, estão confortavelmente instalados no sistema, defendendo a ideologia ou a ordem que combatiam. Isso não deve ser interpretado a partir de casos isolados, no plano da “mesquinhez” individual ou da “falta de vergonha”. É uma evolução que tem suas razões sociológicas e pode ser vista como resultado de sucessivos ciclos de vida das idéias e dos ideais entre gerações, dos quais é difícil escapar.

Entre jovens das gerações passadas, havia bastante irrealismo: para eles, o capitalismo ia acabar a curto prazo e o socialismo já estava na ordem do dia. Hoje os jovens são muito “realistas”, tendem a aceitar as leis do mercado e os produtos dos meios de comunicação com mais facilidade. Os estudantes não parecem manifestar o mesmo entusiasmo. Não existe um modelo de sociedade atraente. Os ideais revolucionários ainda existem, mas não mobilizam como no tempo de Che Guevara. O realismo de mercado, o domínio da tecnologia, os produtos da mídia, a globalização compõem um quadro de referência para o posicionamento dos indivíduos e seus comportamentos parecem mais “cautelosos”. No entanto, o passado não deve ser mitificado: as relações líderes/seguidores e os contínuos conflitos intergrupais não eram isentos de “patologia” autoritária, da qual ninguém deveria ter saudade.

De modo geral, seria equivocada qualquer interpretação que apresentasse o passado como melhor que o presente. Em cada época, é preciso analisar a situação e delimitar os tipos de consciência e atuação possíveis.

Que esperar do futuro?

Fatores importantes que estão modificando a vida estudantil, nas últimas décadas, são as condições de entrada nas universidades e a situação de saída dos alunos.

Até os anos 60, o acesso ao ensino superior ficava restrito a uma pequena minoria. Hoje o ingresso nas universidades continua restrito por diversas razões (escassez de vagas, deficiências do ensino médio, falta de recursos dos alunos), mas houve importante crescimento. Não vamos lamentar o acesso elitizado do passado, nem evocar a suposta “massificação” do presente.

Na época de maior limitação à entrada, os estudantes apareciam na sociedade como grupo destacado – a “elite da nação” - e podiam viver intensas experiências diferentes das da massa da juventude, durante o intervalo de vida universitária. Hoje, ter acesso ao ensino superior, mesmo que seja em faculdades pagas, não está associado a tanto prestígio, e a vida dos alunos não se distancia tanto da dos jovens em geral, nos patamares das classes médias.

Ao saírem da universidade os contingentes formados não encontram as mesmas condições que no passado. Ontem, para a maioria, o destino parecia bastante definido: os formados iam se tornar advogados, engenheiros, médicos, professores, funcionários públicos, dentro de um quadro institucional e um mercado de trabalho previsíveis a longo prazo. Hoje, na “sociedade do curto prazo” (Sennett, 1999), com a flexibilização do trabalho, a reestruturação das empresas, o enxugamento do setor público, encontrar um emprego de nível superior de caráter estável está se tornando mais difícil.

Segundo Richard Sennett, no contexto norte-americano, os jovens precisam se acostumar à idéia que terão de mudar várias vezes de emprego. As profissões e os conhecimentos se tornam rapidamente obsoletos, o espírito de empreendedor é necessário. A flexibilização traz incerteza e empregos precários. Tal tendência começa a se tornar realidade no Brasil, principalmente nos setores de maior competitividade ou em empresas recém-privatizadas. Essa visão de futuro que já chegou, sem dúvida, traz novos motivos de ansiedade para os recém-formados, para os alunos mais jovens que estão se preparando para o vestibular e para os mais velhos, já em exercício, que sofrem demissões ocasionadas pela reestruturação das empresas.

A insegurança quanto ao futuro torna-se uma importante característica da condição estudantil e, nesse contexto, coloca-se a questão dos comportamentos orientados pelo individualismo, dificultando o surgimento de possíveis alternativas de caráter mais solidário.

Individualismo e solidariedade

Os estudantes são particularmente sensíveis a todos os problemas e às crises da sociedade. Dependendo das conjunturas, essa sensibilidade se manifesta, ora sob forma de conformismo e individualismo, ora sob forma de inconformismo, altruísmo ou solidariedade.

Sobre a questão do individualismo, diversos aspectos devem ser observados. É comum ouvir dizer que, a partir dos anos 80, a juventude, em sua maioria, abandonou ideais alternativos, socialistas, e adotou comportamentos mais individualistas, voltados para a valorização pessoal. Os estudantes seriam menos “idealistas” e menos envolvidos que no passado em projetos de transformação geral da sociedade. Isso seria, na verdade, o sinal de uma mudança mais ampla em todas as categorias ou grupos sociais, pressionados pela competitividade na educação e no trabalho. Conseqüentemente, as formas de ação coletiva em associações, sindicatos, movimentos políticos sofrem um recuo e têm menor capacidade de mobilização. O militantismo está em crise, as assembléias esvaziadas, etc. Entretanto, os movimentos renascem em algumas circunstâncias bem específicas, como no exemplo da mobilização dos “caras pintadas”, no episódio do impeachment de Fernando Collor, mas não há uma atividade permanente. (Ver análise desse movimento em Sousa, 1999:53).

Com o individualismo cresce o interesse no consumo, na aparência corporal (malhação) e indumentária (roupas de etiqueta), e em outros atributos individuais que se fazem presentes na vida cotidiana nas últimas décadas. Essa tendência, às vezes chamada de “novo individualismo”, foi analisada no plano filosófico por Gilles Lipovetski (1983).

Além disso, o individualismo cresceu também com a informatização da vida cotidiana. Embora qualquer um possa se comunicar com qualquer outro a respeito de qualquer assunto por meio de computadores, a informática desenvolve uma forma de isolamento das pessoas que passam boa parte de seu tempo na frente de uma “lanterna mágica” – tela de monitor.

Em termos gerais, é inegável a existência do atual individualismo, mas é preciso relativizá-lo e distinguir vários níveis. O individualismo como concepção filosófica oposta ao coletivismo não deveria ser confundido com o individualismo enquanto comportamento imediato, isolado, ao qual os indivíduos são levados por questão de sobrevivência.

Diz-se, também, que o individualismo pode ser encarado de um ponto de vista dialético, na sua relação com seu oposto, isto é, o altruísmo, remetendo a valores de coletividade, de responsabilidade ou de solidariedade.

Prevalece o individualismo em conjunturas sociais e políticas quando não há projetos coletivos e mobilizadores, mas os conflitos históricos fazem emergir, em qualquer momento, novos fatos. Apesar do crescimento das ciências sociais e das técnicas de previsão, o curso da história permanece bastante imprevisível. O predomínio do individualismo não impede o possível ressurgimento de formas coletivas de ação, dentro de um movimento dialético entre minoria e maioria. Como reação ao fluxo liberal/individualista, já se observam comportamentos e formas de pensar orientados por princípios de cooperação e solidariedade, inclusive na área econômica (Arruda, 2000).

No plano filosófico, o individualismo nem sempre é visto como tendência negativa. Alain Renaut (1998) mostra que, em certas circunstâncias históricas, o individualismo está associado a uma busca de emancipação para com as hierarquias e outras entidades coletivas pelas quais as autoridades se impõem aos indivíduos, negando sua autonomia. Ao individualismo conservador opõe-se um individualismo democrático ou individualismo de recusa à submissão.

A velha oposição individualismo/altruísmo tem de ser repensada em função das novas teias de relações que se desenvolvem entre os indivíduos, que não são apenas tradicionais relações de militância, relações de líderes/seguidores, com seus decorrentes ritos coletivos. Segundo a observação de Janice T. P. de Sousa, os jovens militantes dos anos 90 exigem o reconhecimento da individualidade nos movimentos coletivos de que participam. Em outros termos, “o coletivo deve incorporar a forma de ser de cada um” (Sousa, 1999: 194).

Para quem tem algo a dizer ou a fazer em função de ideais coletivos, a superação do individualismo conservador passa por formas de conhecimento e de atuação, que, certamente, serão diferentes das antigas. Não é adequada a lamentação acerca do crescimento do individualismo. As formas de relacionamento, de sociabilidade estão em fase de transformação, de modo acelerado a partir dos anos 90 e o maior peso atribuído à informação e comunicação modifica o quadro da atuação da juventude.


Atuando com mais informação

Os quadros de reflexão crítica e as práticas culturais e políticas precisam ser redesenhadas em função do maior acesso à informação. Existe o risco de receber informações em excesso e de não saber o que fazer com elas. Antigamente, com a censura, qualquer informação crítica se tornava rara e extremamente valorizada. Hoje, com acesso facilitado, há uma desvalorização ou banalização de qualquer informação.

Entretanto, as recentes lutas internacionais contra o neoliberalismo, por exemplo, na ocasião de reuniões da OMC (Organização Mundial do Comércio), como a de Seattle, em 1999, mostram que, por intermédio das redes de informação, é possível organizar, à distância, mobilizações, pressões e ações de grande envergadura (George, 2000).

Estudantes e intelectuais têm um papel importante a desempenhar na seleção de informações críticas, na sua armazenagem (resgate e preservação da memória) e na sua difusão inteligente entre os grupos interessados, tendo em vista a descolonização das mentes. Tal processo não se limita a uma universidade ou a uma área específica. As lutas ideológicas podem ser concebidas e organizadas em redes, com participação de vários movimentos sociais, entre os quais o movimento estudantil.

Nas universidades, em função da escassez de recursos, muita gente acaba vendendo qualquer tipo de serviço a qualquer empresa ou instituição, com perda de significação cultural e acadêmica. Para quem tem algo a dizer, é preciso repensar as formas de interação entre universidade e sociedade, sem limitá-las aos interlocutores do mundo privilegiado, mas abrindo novas frentes com trabalhadores, representantes de movimentos sociais, da cultura popular, etc.

Tal interação ocorre em projetos de extensão que continuam sendo uma excelente oportunidade de contato dos estudantes com diferentes interlocutores e de avanço para um conhecimento vinculado aos problemas reais da sociedade (Thiollent et al.,2000). Ademais, existem interessantes experiências de cursos pré-vestibulares comunitários, organizados com a participação do movimento estudantil, especialmente por grupos de estudantes dos alojamentos ou repúblicas, facilitando o acesso à universidade para jovens carentes, em particular, negros (Amaral, 2000).

A possível atuação social, cultural, política dos estudantes é diferente da dos movimentos das décadas passadas, quando os alvos pareciam mais bem definidos: luta contra a ditadura, contra o imperialismo, etc. Hoje, o quadro de referência está mais fragmentado; há uma série de ações pela cidadania, pela defesa de direitos humanos e direitos sociais, e a favor de minorias (mulheres, jovens, negros, indígenas, trabalhadores rurais, favelados, populações de rua, e outros, que, em seu conjunto, formam uma ampla maioria). Há também o movimento ecológico, para uma reformulação do todo, na relação da sociedade com a natureza. As ideologias e mobilizações estão evoluindo e o papel da informação é diferente. Da difusão de panfletos mimeografados na rua ou na porte das faculdades e fábricas, passa-se a um sistema de informação interativo e a distância.

Para a nova geração, o desafio consiste em encontrar ou inventar novas formas de expressão e de atuação. Cada geração precisa reinventar essas formas para sair do imobilismo e ter algum tipo de participação na história. Se tiverem sensibilidade à informação, os jovens desenvolverão suas habilidades para usá-la de modo mais crítico.

Conclusão

Espero que essas reflexões possam animar algumas discussões e promover o diálogo entre estudantes e ex-estudantes. Talvez, elas encontrem um quadro ideal na forma de vida comunitária como a que existe nas repúblicas de Ouro Preto. Imagino que esta cidade possui um clima cultural favorável, associado à memória histórica do país. Um simples passeio por suas ruas dá o sentimento de estar em um local privilegiado, cheio de significações, que, mesmo que mal conhecidas, revelam-se propícias à reflexão e à redefinição de uma identidade, o que justifica a relevância do resgate da informação.

Aprende-se muito nas universidades, como também aprende-se muito fora delas, nas ruas, nas praças, no centro, na periferia, no campo, conversando com colegas ou pessoas das mais diversas condições. A vida coletiva dos estudantes em repúblicas constitui um momento-chave de maior abertura para o mundo.

A nova geração não imitará a antiga. Só poderá criar formas de consciência, relacionamentos, tipos de trabalho intelectual ou de expressão cultural e artística que sejam apropriados ao atual contexto da vida universitária e voltados para os desafios, crises e rápidas evoluções da sociedade.

As atividades intelectuais não se desenvolvem apenas como exigência curricular, mas como “projeto de vida”. Imagino que muitos estudantes de hoje, procurando promover formas de expressão cultural e dominar mecanismos da informação, poderiam, entre outros objetivos, pôr o seu conhecimento a serviço de iniciativas de cultura, formação e informação alternativas, em diversas áreas, sob forma de experimentações na vida social e cultural relacionadas com percepções do passado, do presente e com preocupações de futuro.

Nesse sentido, o espaço de liberdade de expressão de que dispõem os estudantes universitários na organização comunitária das repúblicas poderia ser mais bem aproveitado e fortalecido por meio de uma mais efetiva inserção na cultura local.

Bibliografia

AMARAL, M. Cursinhos para pobres. Caros Amigos, III, nº 35, fev. 2000, p.13-15.
ARRUDA, M. Uma educação para a ‘economia solidária’. Entrevista, Jornal do Brasil. Educação e Trabalho, 23-07-2000.
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GEORGE, S. Como a OMC foi posta em xeque. Caros Amigos, III, nº 35, fev. 2000, p. 18-19.
LAPASSADE, G. L’entrée dans la vie. Essai sur l’inachèvement de l’homme. Paris, Editions de Minuit, 1963.
LIPOVETSKY, G. L’ère du vide. Essai sur l’individualisme contemporain. Paris: Gallimard, 1983.
LIPSET, S.M. Alternativas para as atividades estudantis. In: BRITTO, S. (Org.). Sociologia da Juventude IV. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
RENAUT, A. O Indivíduo. Reflexão acerca da filosofia do sujeito. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.
SENNETT, R. A corrosão do caráter. Conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro : Record, 1999. 204 p.
SOUSA, J.T.P. Reinvenções da Utopia – a militância política de jovens nos anos 90. São Paulo : Hacker, 1999.
THIOLLENT, M. Maio de 1968 em Paris. Testemunho de um estudante. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, nº 10, 1998, p. 63-100.
THIOLLENT, M., ARAÚJO, T. de, SOARES, R.L.S. (Orgs.) Metodologia e experiências em projetos de extensão. Niterói : UFF, 2000 [no prelo].
[1] Professor da UFRJ.

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