quinta-feira, 18 de setembro de 2008

LIVRO DAS REPÚBLICAS: ANEXO: AOS TXANOS E À TX


AOS TXANOS E À TX
Aldo W. R. Grossi
[1]

As cenas ainda estão bem vivas em minha memória apesar do tempo decorrido: seis de março de 1965, data da formatura das turmas da Escola de Minas de Ouro Preto, do ano anterior.
No Cine Vila Rica, gravatas, ternos, cabelos bem penteados e um indisfarçável orgulho nos rostos daqueles rapazes que ocupam as primeiras filas de cadeiras.
Logo atrás, os pais sorriem como que partilhando aquela conquista com os filhos. As mães já não conseguem mais se conter e pequenos e delicados lenços brancos de seda são vistos aqui e acolá desmanchando cuidadosas maquiagens, em olhos que misturam cosméticos, alegria e lágrimas.
Irmãos, amigos, muitas palmas. Em meio a cada família uma moça que não traz os traços da hereditariedade.
A solenidade segue seu ritual como em todos os outros anos: discursos, juramentos, palmas e o desfilar, em ordem alfabética, daqueles jovens que o destino fez reunir na nossa Escola no limiar da década de 60 e que, agora, cumpriam ali seu último dever de estudante.
Algo estranho aconteceu comigo no momento em que o Dr. Rômulo, o Diretor, me entregou o diploma. Alegria pelo triunfo? Emoção diante da vitória? Ou teria sido o primeiro sintoma de uma saudade enorme que me assaltaria no dia seguinte para nunca mais me deixar em paz?
Já na rua, os cumprimentos: abraços, parabéns, tapinhas, beijos, olhares curiosos de alguns turistas que ainda não tinham entendido o significado daquela reunião.
Meus olhos passam pelo largo: o bar do Crispim, o boteco do Zé de Arimatéia, o cinema do Dodô, a papelaria do Sr. Silvio, o correio. Novamente uma sensação indefinida me percorre.
Pouco a pouco desfazem-se os grupinhos familiares e cada clã segue, a pé, para a República do filho, onde as comemorações vão se prolongar por todo o restante do dia antes que o baile de gala no CAEM encerre aquele sonho que marcará o início de uma nova caminhada; muito mais difícil, responsável, sem o aconchego daquele teto que nos abrigou por 5 anos, suportando pacientemente nossos pileques, nossa irreverência, nosso “bonde” até alta madrugada, nossa malandragem e até mesmo nossas “bombas”, com suas portas sempre abertas e com um sorriso maternal ao final de cada período de férias escolares.
Nossa família chega, afinal, ao pátio da República Território Xavante, já desde o início de sua vida carinhosamente conhecida em Ouro Preto como TX, uma República de estudantes como qualquer outra, mas que, desde sua fundação, mantinha laços de amizade tão estreitos entre seus “filhos” que diferenciava-se das demais, assumindo, para nosso orgulho, papel destacado na comunidade estudantil da cidade.
Entramos pelos fundos. Propositadamente vou ficando para trás e deixo que todos os parentes entrem a minha frente. A namorada, talvez já compartilhando os primeiros momentos difíceis, percebe minha intenção e entra na casa, entendendo que a solidão era tudo que eu desejava por alguns poucos minutos ao pé daquela escada que conduzia à cozinha da TX.
Subo o primeiro degrau: CARABINA , o decano por natureza, de fato e de direito. O confidente, o conselheiro, o amigo certo e, muitas vezes, até o pai. Nunca dispensou uma sesta após o almoço, mas nunca conseguiu completa-la sem ser violentamente acordado pela explosão de uma bomba sistematicamente detonada sob sua janela. Paramos de fumar, juntos, várias vezes e em todas elas fumamos escondido um do outro.
Mais um passo: 4 RODAS , já lia “Visão” em 1960. Entendia de virabrequim quando nossa indústria automobilística engatinhava e era o fabricante e o detonador das bombas que infernizavam a vida do Carabina. Deixou vários projetos de foguetes espaciais sobre sua mesa de estudo. Mal sabíamos nós que aquela hora a espionagem internacional estaria carregando de seu quarto os rascunhos que dariam origem, 15 anos mais tarde, ao “Projeto Challenger”.
Paro novamente; agora sobre o terceiro degrau: AGILDO. Inexplicavelmente não teve apelido de Xeré, como era a expectativa da bicharada. Meu companheiro de quarto e de virada. Virada de que? De estudo, de baralho, de “bonde”, afinal, de amizade. Casou-se durante o curso e mudou-se da TX, mas não esqueceu a República e os TXanos, e levou o Carabina para padrinho de sua primeira filha.
No quarto degrau detenho-me no TORORÓ. Primo rico da TX; coração tão grande quanto a inteligência, sempre nos emprestava Cr$ 50,00 para o pão com salame de domingo a noite. Nunca recebeu e nunca cobrou. Recebia a compensação de outra forma: fantástica capacidade de memorizar o que lia uma única vez. Tocador de bandolim e jogador de ping-pong no CAEM, nunca perdeu qualquer parada para qualquer professor.
Avanço mais um passo: TIÚ ; o eletricista e sonotécnico. Deixou na TX 3 km de fios a mais do que a instalação original. Automatizou tudo a poder de eletricidade. A porta se abria e o interruptor ligava a lâmpada. Disco tocava na sala e era ouvido somente nos quartos que quisessem. Colocou um “T” e um “X” no telhado da República, feitos com lâmpadas fluorescentes. Estava sempre procurando um amperímetro ou um ferro de solda. No amanhecer de um baile do “12”, apagou e foi deitado pelo nosso grupo numa mesa do REMOP, colocada no hall de entrada do CAEM, com 4 velas acesas nos vértices. Dormiu tranqüilo ali até meio dia, para espanto e piedade dos turistas que circulavam pela Praça Tiradentes e que imaginavam ali um velório de um jovem indigente...
Estou no sexto degrau: POMBO. Sisudo, caladão, estudioso e fornecedor do inigualável “ariche” (escreve-se assim, colega?), comida síria tradicional, em forma de bola de tênis, feita com massa de queijo e que deve ser acompanhada de azeite, cebola e pão. Com a desculpa de ser o “dono” da comida, nunca saiu as 2 horas da madrugada para buscar o pão fresquinho na padaria da Praça Tiradentes. No entanto, era o que mais comia, justificando plenamente sua massa corporal. Nos pileques coletivos era a salvação dos colegas: levava um por um até o quarto ou, dependendo do estado, deixava-o mesmo sob o chuveiro frio, no banheiro.
Só mais um degrau... claro, só falta EU: o mais feliz. Escolhido pelo destino, que àquela época me encaminhara para Ouro Preto e me fizera optar pela Escola de Minas, tive a ventura maior de encontrar aqueles amigos e conviver com eles minuto a minuto dos nossos cursos, de nossas excursões, de nossos bailes, de nossas provas. Sob o teto da TX passei com eles a melhor fase da juventude e ali deixei, junto com meu retrato de formatura, um pouco da minha vida.
Mas a sorte me reservara, ainda, um quinhão a mais do que coubera aos meus colegas...
No inicio de 1967, do alto de sua privilegiada localização geográfica nas Lajes, a TX vê chegar de ônibus, na Praça Tiradentes, alguém que estivera fora por 2 anos mas que lhe era absolutamente inconfundível: EU estava de volta à Ouro Preto.
Retribuindo, com o coração em saltos, olho demoradamente para a TX tentando matar todas as saudades de uma vez: a mesma casa, agora de pintura nova. A visão da janela do ex-meu quarto traz-me anos de lembranças... Os dois anos fora, trabalhando pelas plagas da Amazônia, deixaram-me ainda mais ligado àquela casa de onde, realmente, meu coração nunca saiu.
Cheguei para ficar. Meu trabalho é agora em Ouro Preto.
Dias, meses, anos... Invernos, primaveras, verões e outonos... esposa, duas filhas, dois filhos. Viagens, pesquisas, conferências, reuniões. Milhares de toneladas de bauxita, alumina, alumínio. Manganês, quartzo, ferro. Norte, sul, leste, oeste. Aviões, caminhões, jeeps, carroças...
Meu Deus, será mesmo verdade?! O calendário a minha frente acusa o ano de 1984. Difícil acreditar que 20 anos tenham transcorridos desde aquele seis de março chuvoso e frio de nossa formatura.
A TX agora é nossa. Sim senhor! O JEGUINHO, num lance de audácia e de inteligência, características de todo TXano, comprou o imóvel do proprietário original e levou a conta ao Diretor da Escola. Entre expulsá-lo ou adquirir aquela República, que já formara tantos profissionais dos quais a Escola com certeza podia se orgulhar, o nosso Diretor preferiu a segunda opção, numa prova incontestável do bom senso que sempre norteou suas decisões.
Daqueles 7 TXanos fundadores da República em 1960, somos agora 25 por esse Brasil afora nas mais diferentes empresas e nos diversos ramos da engenharia, todos honrando as duas casas em que viveram em Ouro Preto, as quais neles sempre acreditaram: A Escola e a TX. FLINK, MANGA , JABURU , CHUVISCO , LEITÃO, BICHO , XERERÊ , BOCA , MARRUCÃO, NÓ CEGO , SACRISTÃO , BOY , PEIDIM , PREX , SOPA e FONHA.
Lá nas Lajes, a despeito das diversas obras de melhoria realizadas na casa, a escada de acesso à cozinha continua a mesma com seus indefectíveis degraus:
MANDIOKÃO , decano atual (como é interessante constatar que com 23 anos é possível comandar uma República com visão de estadista) é o responsável pelos nossos últimos concorridos e inesquecíveis “bondes”. Nos seus quase 2 m de altura e 220 km/h nas cordas vocais, tem o dom de aglutinar ex-alunos, alunos, vizinhos, visitas e convidados em reuniões de matar de inveja os que para elas não foram convidados.
MAMÃO : dizem os que conhecem que, às vezes, ele não se encontra a si mesmo dentro de seu quarto, tamanha a desordem. Talvez esteja querendo quebrar os recordes de bagunça, registrados no livro Guiness, obtidos pelo 4 RODAS.
BEHUGA, entre uma pedra e outra vendida aos turistas, vai tirando sua soneca tranqüilo e aguardando a formatura, quando então poderá dormir continuamente sem “ser interrompido para essas desprezíveis aulas”...
MAROLA : seu grande sonho é construir o 2o banheiro da República. Ele vai fazer o projeto e já avisou que o cômodo será bem grande e terá 2 vasos sanitários... (???)
ZEBRA, primo rico atual, acabou virando motorista dos TXanos. Numa “excursão” geológica de prospeção, pisou no teto de um forno de carvão vegetal e caiu dentro dele. Saiu preto como tição já engendrando a história com outro personagem: o motorista que o levava. Com tamanha vocação para o ramo, parece que o curso de Eng. Florestal lhe cairia muito bem...
SAPATÃO . Parou de fumar: ordem da namorada. Nesse ritmo é sério candidato ao uso de camisola, touca e pantufas pelo resto da vida. No dia do casamento do Mamão estava excitado e indócil procurando pegar o bouquet da noiva a qualquer custo.
PIRANHA. É o goleiro do time da República e adora levar gols por baixo das pernas. Principalmente em chutes de ex-TXano que lhe proporciona estágio.
PIU-PIU : é como as pílulas de vida do Dr. Ross; pequenino, mas resolve. Como “bicho” foi um exemplo vivo de respeito e dedicação aos doutores. Vai lhe acontecer uma coincidência inusitada: passará diretamente de “bicho” a decano!
Assim é a TX. Local de estudo e de fraternidade, nossa República vai deixando um rastro de amizade em Ouro Preto e vai fornecendo bons profissionais da engenharia ao país (depois desta e de outras alhures, a modéstia pede demissão). Em 1986 completará suas bodas de prata: não haverá justificativa para a ausência de nenhum TXano porque “cessa tudo quanto a antiga musa canta, pois um poder mais alto se alevanta”.





Em tempo:

No momento em que envio esta memória aos colegas, o MANDIOKÃO, MAMÃO e BEHUGA já estão formados e em plena atividade profissional. Mantendo a tradição da escolha acertada, nossos mais recentes companheiros TXanos são:
TUVIRA , mato-grossense alto e magro, não consegue explicar como pode se manter tão fino comendo tanto e nem como conseguiu o título de “Miss Bicho”, no último trote, com o par de pernas que possui.
FURADIM , ganhou do BEHUGA na dormideira. Possui 6 despertadores e diz que “nenhum funciona bem”...
½ QUILO: consegue ser mais baixo do que o PIU-PIU! É preciso dizer mais alguma coisa?
[1] Aldo W. R. Grossi escreveu o presente texto 06 de Dezembro de 1985. Formado em 1964 – Geologia, tem 59 anos.
Trabalhou na Alcan Alumínio do Brasil Ltda de 12/01/65 até 31/12/98 quando se aposentou.

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