Cap. 7 A Conservação de Ouro Preto - POR Rodrigo Meniconi
A conservação das Cidades
A partir da década de 30 a arquitetura e o urbanismo modernos, propostos por Le Corbusier na carta de Atenas de 1933, encontrarão grande ressonância junto aos arquitetos e urbanistas responsáveis pela construção das cidades.
Contraposta à antiga cidade, onde a forma era compartilhada por seus habitantes e produzida “espontaneamente” através de uma imagem consensual, em que os espaços públicos e os edifícios estabeleciam as referências e eram feitos para durar indefinidamente, o projeto moderno propunha a cidade como resultado de uma elaboração científica, racional e funcionalista, reduzindo-a um modelo ideal, abstrato e a-histórico. Como a cidade antiga não correspondia aos pressupostos do racionalismo, ela deveria ser eliminada e substituída, conservando-se apenas as suas edificações excepcionais, ou seja, os seus monumentos.
Na Europa a Segunda Grande Guerra, ou melhor, a destruição por ela provocada, vai recolocar a questão da conservação das cidades de modo dramático e urgente: a extensão e a escala das intervenções necessárias exigem a revisão dos conceitos e dos procedimentos operativos, fazendo com que o embasamento teórico da conservação entrasse em colapso. Somam-se a isso as críticas ao modernismo e as advertências dos conservadores ambientais.
Sob essa nova ótica o projeto de restauração das cidades, executado com os instrumentos do planejamento urbano e regional e com os da história, deve identificar e recuperar seus motivos dominantes e salientes, substituindo a política de limitações e a passividade das ações de tutela por um ativo programa de intervenções. No dizer de Bonelli, a cidade é “vida traduzida em forma e forma repleta de vida”, e, portanto, além das questões formais, estruturais e funcionais, as ações devem cuidar da reforma das condições de existência das pessoas.
Em 1975, o Conselho da Europa realiza um congresso consolidando as experiências de recuperação urbanística levadas a efeito no continente e estabelecendo como prioridade a conservação integrada das cidades, com todos os seus valores e a participação de todos os agentes.
No ano seguinte, esse tema assume dimensão internacional na Conferência de Nairobi realizada pela Unesco, onde são produzidas recomendações relativas à salvaguarda dos conjuntos históricos e tradicionais e a seu papel na vida contemporânea, que, além de reafirmarem os valores desses conjuntos, advertem quanto aos riscos de banalização e normatização provocados pela cultura de massas e pelos processos de globalização.
Como resultado desse movimento, surgem reivindicações indicando o retorno aos valores subjetivos e da tradição, investidas contra o zoneamento propondo a convivência de usos e funções diferenciadas, propostas de resgate da diversidade e peculiaridade dos lugares, como estratégia de diferenciação cultural destinada a combater a impessoalidade, homogeneização e frieza “machiniste’. Contra a cidade totalizante e arbitrária, criada apriorísticamente, surge a cidade construída a partir de suas várias realidades: polifônicas, fragmentada, plural.
Constatou-se então que essa cidade já existia de fato, concreta, viva, nas cidades antigas ou nas partes antigas das cidades que, por várias razões, ficaram à margem do desenvolvimento ou resistiram ao confronto com a renovação. A partir daí a conservação do patrimônio e o planejamento vão se reunificar, retornando-se, de certa maneira, à lógica de formação e crescimento da cidade pré-industrial.
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Otávio Luiz Machado (Organizador)
O caso de Ouro Preto
No Brasil esta questão vai estar intimamente ligada à cidade de Ouro Preto, servindo para situar e esclarecer os momentos fundamentais do desenvolvimento do discurso e da prática da restauração entre nós. Ouro Preto, já consagrada como monumento nacional e enfeixando, portanto e consensualmente, todas as categorias de valores, será o lugar ideal para o estabelecimento dessas práticas. No dizer de Ávila (1980:11), ela é “a cidade síntese, a cidade-documento que nos entrega na sua coerência e autenticidade, a imagem viva de uma cultura, de um estilo civilizador e de um modo de ser que marcaram toda uma decisiva época da formação mineira, da formação brasileira”.
Na cidade de Ouro Preto como em toda cidade tradicional a conservação de logradouros e edifícios representativos constituía a norma. Este fato vai fazer com que as remodelações sucessivas preservem e mantenham vivos os seus pontos focais representados pelo casario, pela capelas, pelos edifícios de prestígio, pelos lugares de culto, que muitas vezes são o próprio espaço da cidade, seus logradouros, praças e ruas. Ainda no século XVIII, nas intervenções efetuadas durante o governo de Conde de Bobadela, as escolhas fundamentais e o desenho da cidade já esboçado pelos arraiais foram conservados e potencializados. Trata-se mais de uma continuidade do que uma ruptura. Este mesmo traço de continuidade vai conduzir depois a construção das capelas sempre ao longo dos caminhos consolidados e sempre exaltando as peculiaridades da paisagem.
No século XIX quando se instala, no dizer de Lourival Gomes Machado, o espírito clássico advindo com a missão francesa, a atitude será sempre respeitosa e comedida. Os novos edifícios construídos nesta época mantém volumes, ritmos e soluções de implantação e de decoração semelhantes às dos prédios preexistentes, uma vez que possuíam as mesmas matrizes renascentistas. Isso vai fazer com que o diálogo entre a arquitetura existente e a arquitetura inserida no tecido urbano não seja conflituoso. Também no século XIX a cidade busca recuperar a sua história, na verdade inicia a construção de sua memória, com a seleção dos eventos e personagens mais significativos. Isto aparece no estudo sobre o Aleijadinho, de Rodrigo Ferreira Bretãs, na criação do Arquivo Público Mineiro e no estabelecimento das Efemérides Mineiras, de Xavier da Veiga. Adquirem maior vulto o episódio da Inconfidência Mineira e o gênio de Aleijadinho, que serão depois os balizadores para a identificação dos valores nacionais que estariam impregnados nos próprios monumentos da cidade.
No século passado a cidade conservou a herança do ouro, promovendo a “revitalização” de seus valores e “reciclando” seus edifícios mais importantes; ao mesmo tempo que procedia à implantação de novos equipamentos urbanos, renovava edifícios e logradouros e buscava transformar seu próprio destino e vocação.
Na “Memória Histórica”, publicada em 1911, por ocasião da celebração dos duzentos anos da cidade, são reunidos diversos ensaios que intencionam realizar um inventário sintético de seus valores.
Ressaltando uma nova vocação da cidade, que constituirá “um dos mais notáveis centros intelectuais do Brasil, na última metade do século XVIII e no século XIX”, as “Notas sobre alguns estabelecimentos de Ouro Preto”, escritas por Cláudio de Lima, elencam a Escola de Farmácia, de 1839, cujo edifício atual ocupa a antiga “Chácara dos Monges” ; o Colégio da Assunção, da Congregação da Missão, de 1840; a Escola de Minas, com a criação definida em Resolução de 1832, instalada primeiramente na Rua das Mercês e depois transferida para o Palácio, de 1876; o Liceu de Artes e Ofícios, criado em 1886, com sede em estilo “americano moderno”, cuja construção, iniciada em 1889, “encontra-se até agora não concluída’; o Ginásio de Ouro Preto (antigo Liceu Mineiro), de 1898, situado na Rua do Rosário; a Escola Normal de Ouro Preto, de 1873; e ainda, os colégios particulares Copsey, Brandão e Mineiro.
A criação da Escola de Minas, patrocinada pelo Imperador e levada a efeito por Gorceix, irá consolidar seu papel de centro de formação de estudo. A escola de engenharia, considerando a industrialização da província e do país, destinava-se a formar agentes de modernização ; com sua
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Otávio Luiz Machado (Organizador)
extensa e consistente formação técnico-científica e seu caráter operativo, seus alunos contribuirão nas mudanças da feição do Brasil. Posteriormente as escolas vão manter viva a cidade, não só devido a sua fundamental importância na vida econômica e social citadina como também por seu importante papel na conservação física das casas das “repúblicas” e do antigo Palácio.
Cumpre assinalar que no período de estagnação que seguiu-se à transferência da capital será essa a atividade que assegura alguma vitalidade à urbe. Fundamental também é a ação de antigos alunos e professores, como as iniciativas de Pandiá Calógeras, que instala um batalhão do Exército Brasileiro na região próxima da Lagoa do Gambá – local hoje ocupado pela Escola Técnica, e de Américo Reneé Giannetti, responsável pela implantação da indústria do alumínio em Saramenha.
Nota-se sempre, que ao lado das modificações aportadas pelas transformações tecnológicas, de gosto, de condições sociais e das próprias vocações da cidade, estão sempre presentes as iniciativas de conservação e preservação. Tanto é assim que a cidade chega ao século XX praticamente com o mesmo traçado urbano e com muitas das edificações construídas ainda no século XVIII.
No século XX a cidade passa a constituir uns dos argumentos mais enfáticos para a construção da própria identidade nacional uma vez que personifica e concretiza os valores históricos e artísticos da brasilidade. A necessidade de conservá-la intocável vai fazer com que os serviços de proteção se organizem. Passando do discurso à prática têm início no Brasil as ações efetivas de conservação e restauração.
A cidade começa a monumentalizar-se com a transferência da capital para Belo Horizonte e o seu conseqüente esvaziamento populacional, econômico e simbólico-representativo. Esses fatos vão lançar as bases e condições para as novas concepções e propósitos aos quais Ouro Preto deverá responder.
Mesmo antes do tombamento ela é destinada a atender a outras demandas : a construção/reconstrução de um retrato de Minas e do Brasil, fundamental para a afirmação simbólica da identidade nacional. Qualquer ameaça à integridade desse patrimônio significaria uma ameaça à própria brasilidade, derivando daí o sentimento de perda que aflora constantemente no discurso dos órgãos de proteção e tutela.
No que concerne à cidade, a construção do monumento vai fazer com que ela perca, de fato, grande parte de sua autonomia e muito dos seus referenciais. A Ouro Preto que surge dos discursos não é mais uma cidade, pelo menos não uma cidade como as outras: de certo modo, transforma-se em objeto museológico.
A trajetória dessa metamorfose, ensaiada ao longo das três primeiras décadas deste século, irá culminar com a sua oficialização como Monumento Nacional, em 1933, e o seu posterior tombamento, em 1938. Primeira cidade a contar com legislação de proteção municipal ; palco da excursão modernista em 1924 – capitaneada por Mário de Andrade, objeto de obras de restauração levadas a efeito pelo governo estadual no final dos anos 20 e pela Inspetoria de Monumentos Nacionais durante a década de 30, Monumento Nacional tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e inscrita no elenco das cidades Patrimônio Cultural da Humanidade pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco), Ouro Preto será sempre o lugar onde as políticas culturais e as ações efetivas de conservação, restauração e revitalização vão ser experimentadas e efetivadas, oferecendo, portanto, exemplos que ilustram os diversos comportamentos relativos a essa matéria.
Ouro Preto, que já experimentou diversas fases e diversas abordagens, encontra-se agora em um novo ponto de mutação. Embora não estejam ainda definidos, nem mesmo delineados, os novos arranjos institucionais e legais nem os instrumentos de controle e gestão urbana que forçosamente se darão ao fim das transformações em curso, uma coisa é certa deverão perseguir a criação de uma arquitetura urbana fundada nos valores de sua gente.
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