quinta-feira, 18 de setembro de 2008

LIVRO DAS REPÚBLICAS: ANEXO: OUTUBRO DE 1974 – CHUVA TORRENCIAL OU O RENASCIMENTO DA REPÚBLICA


OUTUBRO DE 1974 – CHUVA TORRENCIAL OU O RENASCIMENTO DA REPÚBLICA
Adilson Rodrigues da Costa


Este é um capítulo da história de uma República de estudantes de Ouro Preto, nada mais! Qualquer comentário deve restringir-se ao espaço dos sobreviventes. Vive la Republique!

Capítulo Zero. – Zeus e os abacaxis.

O estado de espírito era o da ressaca dominical. A madrugada anterior fora vivida no CAEM com todas as emoções permitidas e proibidas. Havia muita coisa proibida naquele tempo, inclusive emoções! Aquele tradicional encontro matinal dos republicanos cumpria um papel já tradicional: reviver o passado próximo, cheio de situações, aparentemente novas, apresentadas no final da semana. Nossos espíritos traziam marcas de um frustrado “doze” , recém vivido, sem nada que merecesse comentários. Ainda restavam garrafas de vodka não consumidas pela falta de parceiros que nada viam de interessante naquele espaço que sucumbia dia após dia enquanto a torneira do banheiro pingava sem cessar e sem que alguma providência fosse encaminhada a contento. O fim estava próximo, a República desaparecia como outrora o Império morrera deixando dentre algumas lembranças a nossa Escola que começávamos a conhecer nas suas vicissitudes e idiossincrasias. Laranjas e abacaxis ajudavam-nos na tarefa de melhorar o hálito e a acidez deixada pelo excesso de cerveja da noite anterior. Trovões anunciavam a tragédia que ninguém supunha iminente. Na sala uma velha radiola tocava algum vinil arranhado – provavelmente o disco de Dionne Warwick, na melhor das hipóteses, pois a coleção de discos acumulada ao longo dos anos anteriores perdera-se nas inúmeras mudanças que acabaram por nos confinar naquele casebre de dois andares unidos por degraus irregulares e escorregadios. Valia saber que éramos vizinhos do “Mateus” – um bar de reputação duvidosa, mas que nos garantia a ‘última’ cerveja das noites solitárias e ameaçadoras. Nossos medos eram muitos, mas o maior deles era o do desaparecimento do cenário da história das Repúblicas da cidade. Chovia forte e a subida para o almoço no REMOP já começava a ficar comprometida. Vivíamos “na Antônio Dias” bem próximos do chafariz de Marília onde presenciamos as primeiras incursões da TV brasileira na produção de mini-séries e comerciais fajutos com atores de calibre duvidoso. Guardamos para nós o privilégio de vaias memoráveis áquilo que era de fato grotesco. Chovia forte e o poster de Sharon Tate continuava escondendo o buraco na parede da sala de visitas. Que destino tomou este poster? Nobody lives forever! O disco na radiola talvez já fosse outro: qual dentre tão poucos e tão ruins? Risos, provocações, trovões e, finalmente, para a glória dos desamparados os sons do desabamento. A existência de Zeus se fez sentir. Corremos para todos os lados enquanto o teto do andar superior ruía sob as águas de outubro, que não têm o charme das águas de março de Tom Jobim. Quem viveu não esqueceu. A sensação de um teto ruindo sob as cabeças é algo que não tem tradução; ou se vive ou se contenta em imaginar. Chegamos ao fim de uma tragédia anunciada nas brigas de Leo Botelho, no descaso de alguns, no ideal de poucos, nas esperanças do “japonês”.
Subimos com os corações nas mãos até o alto da escada para testemunhar o que , mais tarde o prefeito do campus constataria grotescamente: é mesmo, exclamou, ruiu, desmoronou, caiu, inundou, imundou os poucos pertences daqueles que aqui chegaram para “fazer a revolução” que nos fora reservada: a reconstrução da República era mais do que nunca a nossa tarefa, precisávamos transformar esta responsabilidade num sonho ou estaríamos mortos para as gerações futuras. Ouro Preto deixaria de ter o único Jardim Zoológico que já possuíra. Tarefa de “bicho” e, alí estavam os sobreviventes do naufrágio da arca de Noé. Já não me recordo das emoções imediatas. A necessidade privou-nos do sentir, era vital agir rápido, com eficácia, eficiência, produtividade e tudo aquilo mais que a Escola ainda não nos ensinara e talvez nunca viesse a ensinar. O acaso e a necessidade encontraram-se naquela manhã de domingo, aos vinte e poucos dias do mês de outubro. Quem tiver tempo e curiosidade é só buscar num calendário daquele ano que não foi o ano de Ricardo III. Capa de chuva improvisada lá fomos nós, diga-se de passagem, eu e o “bicho” à procura, ou melhor à caça do Prefeito do Campus onde quer que ele estivesse. Favas às goteiras aos pés molhados, à aparência de sinistrados. O nosso objetivo era claro; queríamos e precisávamos dormir em local seguro porque amanhã seria segunda e segunda é dia de aulas e não se admite faltar às aulas da Escola de Minas.
Não importávamos com o que o velho dr. Zé Storry fazia ou pretende-se fazer naquele dia pois já tínhamos decidido unilateralmente a prioridade daquele instante: voltar para a sede da República, no Beco dos Bois, onde outras gerações de “bichos” reinaram noutros tempos e, por um descuido (?), se viram “fora do esquema” privilegiado das Repúblicas da Escola. Sonhávamos alto demais porque a ex-velha casa do Beco estava destinada a um futuro professor visitante estrangeiro, após cuidadosa reforma. Para agentes determinados isso não era importante. A busca da sobrevivência é instintiva, é animal. Enquanto desviávamos das goteiras dos casarões da cidade pensávamos nos poucos pertences que eram desmanchados pelas águas e nos parceiros ausentes que, preferiram o risco da mesa de baralhos ao jogo de cartas marcadas da negociação que seria inevitável. Felizmente as marcas nas cartas eram nossas conhecidas e o adversário subestimava-nos “a priori”.

Manhã de domingo, abacaxi!

A conversa não durou muito. Os fatos foram relatados e a proposta foi lançada sem hesitação. Retornaríamos ao Beco e depois discutiríamos o assunto se assim nos conviesse. Sabíamos que a partir daquele instante “todo o sistema” tomaria conhecimento do problema: prof. Wagner Colombaroli – diretor da EM, Theódulo Pereira – Reitor de uma UFOP ainda sem marca ou destino certo. Retornamos ao local da tragédia para aguardar as providências. Não me lembro se tivemos fome ou sede durante aquelas horas e se pensamos em algo mais do que a salvação da própria pele. Pele molhada de animais à procura de abrigo.


Capítulo Um. A inspecção técnica ou a constatação da tragédia.

Sem chances. Até um cego molharia os pés nas águas acumuladas na sala de visitas. Insistíamos em manter a radiola tocando, qualquer coisa que nos tirasse daquela realidade desesperadora era um alento. Lamento o desaparecimento do poster da Sharon . Terá ficado esquecido naquele sítio decadente cobrindo o buraco na parede?
Após o veredicto forçado do dr. Prefeito a coisas começavam a tomar novo rumo. É, caiu mesmo! Este foi o laudo técnico que nos abria a porta do Beco. Fora combinado que um caminhão Mercedes da UFOP, ou melhor da Escola, como se dizia naqueles tempos, faria a mudança, mas como era domingo não haveria funcionários para ajudar no transporte dos poucos e memoráveis pertences: colchões, bentas, discos arranhados, panelas amassadas pelo Léo nos seus momentos de explosão criativa, os baralhos da dupla do sertão, o “abat-jour” do Edson (mas não é aquele do Thomas Edson que está na Sala da Congregação da EM), o tênis do “Subaco” , os restos das bebidas não bebidas no passado e fracassado “Doze”, despertadores, estrados, colchões velhos herdados, cobertores fedorentos. Esta miséria fez-nos esquecer do poster da Sharon.
Se não há funcionários há colegas vivendo em Repúblicas estáveis e seguras à procura de algo excitante para uma tarde chuvosa de domingo. A República Aquarius cedeu-nos Mané Cachaça e Bronco, dois barbacenences solícitos, desinteressados e amigos. Em troca oferecemo-lhes um passeio de Mercedes Benz, azul, pelas ruas de Ouro Preto, na carroceria, em meio à mudança, regados àquela esquecida vodka que agora tinha sabor de vitória. O que significa vodka em russo? Desfilamos sob a chuva, meio cobertos por uma lona, cheio de risos e de um prazer que não se traduz. O acaso juntara-se à necessidade e desta fazíamos o futuro. A República estava salva, viva, desfilava por Ouro Preto enquanto corria a notícia do nosso retorno vitorioso ao Beco onde as paredes da cozinha e dos banheiros da casa eram azulejadas e a pia da cozinha era de aço inox! Ninguém tivera isso até então. Mané Cachaça exclamou ao entrar no Palácio: se eu fosse vocês não sairia daquí! Ele não conhecia os nossos planos, mas acertara em cheio. Apesar da falta de braços partimos para montar a casa enquanto a noite caía e o baralho era jogado na Cassino. Naquele momento éramos alimentado pela alegria da reconquista. Experimentamos a sensação daqueles que reconquistam o território que lhes fora tomado. Nobody lives forever!

Capítulo dois. O retorno do Japonês ou a Grande Festa.

Recém chegado de Mariana, onde fora namorar, Mário Japonês dirigiu-se à Antônio Dias e “quebrou a cara”. Informado de uma súbita mudança em meio à tormenta concluiu que “havíamos retornado”. Saiu desesperado em direção ao Beco dos Bois que agora voltava a ser dos bichos. A promessa a ele feita por um dos protagonistas desta história de estudantes se realizara. Lutar pela República era a ladainha que ouvíamos deste veterano idealista que em breve colaria grau. Imagino a felicidade do Japonês quando se viu de novo “em casa”. Ele agradeceu-nos com uma das maiores festas já vividas no Beco quando naquele fim de ano promoveu-se ao grau de Engenheiro da Escola de Minas. Por ali já havia passado o primo Morishita – figura ímpar que bebe cachaça esquecida ao sol do meio dia em um garrafão abandonado enquanto varre a casa suja pela festa da noite passada. Hoje viaja de moto. Vieram todos a esta festa, até o Santo Antônio – pergunte aos moradores da Castelo e eles saberão informar quem é o Santo Antônio. Vieram outros dos mais remotos recantos de Ouro Preto, alguns deixaram marcas indeléveis num dos quartos. Felipe, filho de Odilon Subaco e Virgínia, não se lembra, mas posso garantir que não foi a melhor das suas noites de bebê: o ar estagnado no quarto onde dormia deixou lembranças.
Desde então passaram-se vinte e cinco anos. Nobody lives forever!

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