quinta-feira, 18 de setembro de 2008
LIVRO DAS REPÚBLICAS: ANEXO: A VIDA EM REPÚBLICA: TEMPO E ESPAÇO DE APRENDIZADO PARA VIDA E A PROFISSÃO
A VIDA EM REPÚBLICA: TEMPO E ESPAÇO DE APRENDIZADO PARA VIDA E A PROFISSÃO[1]
João Bosco Silva[2]
Morei em duas repúblicas de Ouro Preto - no Ninho do Amor, ainda rua São José, e depois no Reino de Baco, na rua das Mercês, até quando me formei, em 1969. Sempre tive um carinho muito grande pela vida nas repúblicas porque considero que, acima de tudo, elas diferenciam a formação dos estudantes de Ouro Preto. E isso por muitas razões.
Uma primeira me parece fundamental - na república aprendemos a viver e a trabalhar em equipe e de uma forma fraterna. E isso me parece fundamental, porque ninguém vive sozinho. Além disso, ter espírito de equipe no mundo de hoje é básico. Numa república de estudantes você aprende a respeitar as opiniões das pessoas, a conviver com as diferenças e a argumentar, porque esse é um ambiente realmente democrático.
Ali ninguém é superior a ninguém. Então, você tem que procurar defender seus pontos de vista com respeito, para viver em harmonia com pessoas que têm formações, histórias e visões muito diferentes umas das outras. E isso eu considero uma base importantíssima da nossa formação para a vida e para a profissão, porque ao longo da nossa trajetória, vamos enfrentar desafios semelhantes como o de trabalhar e conviver com pessoas também com formação, histórias e visões muito diferentes das nossas.
Um outro aspecto importante da vida em república é você construir o seu network de trabalho, uma rede de pessoas com as quais pode contar e trocar experiências ao longo de toda a vida. Sempre se diz que em Ouro Preto existe uma “máfia” e acho que essa “máfia” é positiva e começa a ser construída dentro da república, na forma fraterna como vivemos nesse ambiente. Ali a gente constrói amizades importantes e faz contatos que vão nos ajudar no nosso futuro profissional de uma maneira sobre a qual não nos damos conta enquanto vivemos a experiência.
Dos relacionamentos e amigos que fiz no meu tempo de estudante em repúblicas, mantenho contato com várias pessoas até hoje. Naturalmente depende muito das cidades onde estão, mas sempre converso com ex-colegas de república e procuramos manter esse contato, seja por telefone ou quando viajamos para cidades onde moram alguns colegas. É uma relação que se mantém muito viva e faço questão disso. Não tenho dúvida que eles também fazem. Esse é o espírito que o tempo de universidade e de república nos inspira.
Um terceiro ponto que destaco da experiência de viver em repúblicas é a responsabilidade que adquirimos desde muito cedo, por exemplo, ao cuidarmos dos aspectos econômicos da república. No meu tempo, a cada mês tínhamos um presidente responsável pelas "contas" e ali se aprendia também valores éticos fundamentais para a vida profissional, na administração do dinheiro da república, ao pagar contas para as quais todos contribuem.
· A particularidade dos estudantes de Ouro Preto
Tem um aspecto muito particular da vida estudantil de Ouro Preto que sempre me instigou, na medida que fui um estudante universitário desta cidade com características tão singulares. Trata-se do fato de vivermos cercados pelas montanhas, as montanhas de Minas e de, na minha época, sairmos muito pouco dali. Se de um lado isso nos permitia refinar os nossos sentimentos e ideais- afinal Ouro Preto é um símbolo permanente da busca e da crença de ideais e utopias, que não se pode perder nunca - ; de outro lado tínhamos o desafio de enfrentar uma vida profissional aqui fora que nos convidava para o mundo.
Hoje isto talvez seja mais forte porque estamos numa economia global e esse é um desafio que, acredito, a nossa Escola de Minas continua a ter, mesmo com toda a aproximação que as novas tecnologias oferecem. Esse desafio de trazer a dimensão global do mundo, das suas exigências para a formação dos jovens hoje, me parece também que confere uma particularidade aos estudantes de Ouro Preto.
De outro lado, acho que a Escola de Minas de Ouro Preto sempre se caracterizou pela qualidade técnica dos engenheiros ali formados. Então, a parte acadêmica, a parte técnica, sempre foi um dos pontos altos e de diferenciação do pessoal formado em Ouro Preto. Outro aspecto é a condição que essa vida próxima e fraterna entre as pessoas numa cidade com as característica de Ouro Preto oferece. Como ressaltei, o estudante de Ouro Preto desenvolve uma facilidade muito grande para trabalhar em equipe e isso vem dessa convivência nas repúblicas, da oportunidade de aprendermos a trabalhar em equipe, de forma fraternal e democrática.
Nesse sentido as repúblicas em Ouro Preto tradicionalmente se constituíram em espaços que estimulam e contribuem para a formação do acadêmico formado na cidade, para o engenheiro, no meu caso. Primeiro porque é a forma mais econômica viver em Ouro Preto, estudando num curso universitário . E segundo por essa formação cultural que a vida em república nos dá - um sentido de viver num ambiente completamente democrático, aprendendo a entender as outras pessoas. Reafirmo sempre - aprender a viver em equipe nas repúblicas de Ouro Preto é um fator muito mais forte do que em qualquer outra região que temos no Brasil.
Embora não acompanhe de perto a vida das repúblicas hoje, procuro visitar de vez em quando a república Reino di Baco, onde morei. Mas acho que os valores mais importantes que permanecem nítidos para mim são o da amizade e do espirito de equipe, muito evidenciados quando os ex-alunos retornam ali. Considero que a preservação desses valores determinam o companheirismo e a fraternidade, que se perpetuam mesmo depois que as pessoas se formam e seguem outros caminhos, outros rumos. Isso ninguém tira da gente. Acredito que isto dá identidade às repúblicas de Ouro Preto.
· A alegria e a tradição que o tempo não apaga
As festas e um certo barulho próprios das repúblicas de Ouro Preto costumam causar controversa e são, ás vezes, motivos de oposição a elas. Há um ponto que é o da alegria própria da juventude e outro que significa os direitos dos moradores. Nessa parte acredito que tanto os estudantes como os vizinhos de repúblicas e pessoas da cidade precisam achar um termo de convivência possível. Se a vida de estudante é um período relativamente curto, feito também de excessos e extremos, eles não podem prescindir do espírito de convivência com as pessoas da cidade, fora das repúblicas. Estamos aqui falando de direitos mútuos.
E nesse sentido, talvez seja justamente a base de respeito e espírito de equipe, de um ambiente democrático e fraterno que a vida em república nos ensina, o que seja preciso preponderar.
O meu tempo de repúblicas em Ouro Preto foi marcado por muita proximidade com os vizinhos e respeitar as diferenças, como falei, foi uma coisa que marcou muito nessa convivência. Namorava-se muito com as moças da cidade, qualquer motivo era festa, mas havia uma harmonia muito grande. Não me lembro de hostilidades e sim de uma relação calma e proveitosa.
Se a tradição nos marca em Ouro Preto, ela também ensina. A idéia da equipe responsável por este projeto sobre a história das repúblicas é importante, não só pela preservação dessa história dentro de uma história maior que Ouro Preto guarda, mas também pela possibilidade de resgatar valores e oportunidades que a vida em república oferece para a nossa formação profissional e para as nossas vidas.
Acredito que não só para quem chega em Ouro Preto e vive em república, mas para todos, o equilíbrio é fundamental, não perder de vista o que se quer - no caso, o objetivo primordial ali é fazer um bom curso universitário. Mas é possível conciliar isso com o lazer, com a alegria e o companheirismo que a vida em república permite, com a oportunidade de conhecer as pessoas, se integrar com as outras repúblicas, mesmo porque essa integração com os colegas da própria república e de outras repúblicas vai permitir construir um network de trabalho no futuro e isso é muito importante.
A tradição das repúblicas de Ouro Preto sempre teve uma marca de harmonia com os habitantes da cidade - elas compõem esse cenário e por décadas a cidade, seus habitantes, abrigam os estudantes. A essa altura da vida, arrisco deixar um conselho: essa parte da nossa trajetória, como estudantes, e estudantes que vivem em república, é muito curta e é preciso aproveitá-la pela sua riqueza e pela bagagem que ela nos dá para o resto da nossa vida. E quem convive em harmonia no ambiente das repúblicas, aprende a dividir sonhos e projetos, conquistas e fracassos, aprende a defender seus pontos de vista e a respeitar a opinião dos outros, a conciliar prioridades individuais com a vida em coletividade, com projetos da sociedade.
· Retribuição e emoção
Voltar a Ouro Preto é para mim uma renovação, uma volta muito prazerosa ao passado. Ao reviver uma parte da minha história com esta cidade relatando minha vida nas repúblicas por onde passei, é como uma visita ao coração - me emociona, me faz refletir sobre as alegrias, os desafios, os temores e o aprendizado que tive com esse tempo e essa convivência, que determinaram muito da minha trajetória na profissão e na vida.
Na medida que você se desenvolve na vida profissional, é importante voltar no tempo e na memória, reconhecendo o lugar, as pessoas e as oportunidades que te propiciaram esse desenvolvimento e agradecendo pelo que recebeu. E uma forma de agradecer à Escola me parece que é dar alguma contribuição como participar da Fundação, podendo discutir assuntos da nossa Escola e refletir sobre formas de reforçar ainda mais o conceito da Escola e da Universidade de Ouro Preto.
Neste ano, ao aceitar o convite da Fundação Gorceix para integrar seu Conselho, acreditei estar tendo uma oportunidade que todo ex-aluno da Escola de Minas mereceria - a de dar uma contribuição para a formação dos novos engenheiros que estão entrando no mercado de trabalho. Existem, naturalmente, outras formas de contribuição, de retribuir à Escola e à cidade o que aprendemos e conquistamos. No ano passado, por exemplo, conversando com estudantes da cidade, notei uma demanda de maior conhecimento do mercado de trabalho, de como se preparar para ele. Na época, tomei a iniciativa de trazer aqui um profissional muito conhecido em São Paulo para conversar com os alunos durante um dia sobre questões simples mas fundamentais para quem entra no mercado de trabalho - como se prepara um currículo, como se comportar numa entrevista, como selecionar empresas para se candidatar a trabalhos. Esse é um outro tipo de contribuição.
Atuo na indústria do alumínio e sou hoje presidente da Associação Brasileira de Alumínio. Acabamos de assinar um convênio com a Escola de Minas para desenvolver cursos sobre a metalurgia do alumínio e, através desses cursos, não só abrir para os alunos uma perspectiva nesse segmento da indústria, que está em crescimento e vem recebendo investimentos constantes no país, mas também garantir, através de cursos a serem ministrados nas empresas, recursos para a Escola.
Se hoje eu estivesse voltando a Ouro Preto como estudante, começando tudo, faria o mesmo caminho - tenho de Ouro Preto e do meu tempo de república, muito destacadamente, as melhores recordações. Tive como estudante universitário um período dos mais significativos na minha vida e o trilharia exatamente da mesma forma. Tive, acima de tudo, uma vida muito em Ouro Preto, aprendi para a vida mais do que para a profissão e gostaria de voltar exatamente do mesmo jeito. Tenho saudade desse tempo mas essa saudade se transformou, também com o tempo, numa companheira amiga e solidária, que de vez em quando abre um velho álbum de retratos para apaziguar o coração.
[1] Depoimento tirado a partir de entrevista feita pelo pesquisador Otávio Luiz Machado em 26 de agosto de 2000, em Ouro Preto.
[2] Engenheiro Metalurgista pela UFOP turma de 1969. Presidente da AlcanBrasil
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