quinta-feira, 18 de setembro de 2008

LIVRO DAS REPÚBLICAS: PARTE 2: INÍCIO DE PESQUISA NAS REPÚBLICAS DE OURO PRETO: COMO FUNCIONAM AS RELAÇÕES DE PODER?


CAP. 2 INÍCIO DE PESQUISA NAS REPÚBLICAS DE OURO PRETO: COMO FUNCIONAM AS RELAÇÕES DE PODER?
María Fernanda Salcedo Repolês
[1].


Resumo: O presente artigo explica as bases de elaboração da pesquisa-ação realizada por alunos do Departamento de Direito da UFOP, visando problematizar as formas de relações de poder estabelecidas nas Repúblicas de Ouro Preto.
Abstract: The current article sets the foundations for a research which unites both investigation and action, elaborated by students in UFOP's Law Department, seaking to bring about a discussion on the types of power relationships present in the "Republics" (student lodgement) of Ouro Preto.


República é, desde sua origem, um termo que expressa como são organizadas as relações de poder. Na República de Platão assim como na concepção romana de Cícero vão se delineando as bases para um conceito bastante complexo, que, por um lado, visa se contrapor a uma idéia de poder centralizado e passado conforme o critério da hereditariedade, em favor de critérios seculares para a obtenção do poder assim legitimado. Por outro lado, a república expressa a noção de 'res' 'pública', ou seja, de coisa pública, como fim moral último da atuação do poder através de leis comuns.
Esses critérios formam os princípios sob os quais a Modernidade poderá falar em um Estado de Direito, na legitimidade pela vontade do povo, assim como, na soberania popular, que conjuga os dois primeiros. E poderá se ver a realização concreta de tais princípios na formação dos Estados Unidos da América (1776), na República Francesa (1789), assim como no Brasil, cem anos depois (1889).
Atribuiem-se duas possíveis explicações para a utilização do termo "República" no contexto das casas que abrigam os estudantes da Universidade de Ouro Preto, ambas relacionadas a esse significado político. Por um lado, tal termo alude à autonomia administrativa de que as Repúblicas gozam em relação à Universidade e reconhecida pela própria direção dessa. Por outro, remonta-se a um fato histórico. Quando do fim da Monarquia no Brasil e implantação da forma republicana, em 1889, os estudantes fizeram uma manifestação por ocasião da visita à então capital de Minas Gerais, do gabinete parlamentar imperial, encabeçado pelo Ministro Ouro Preto. Para demonstrar sua rejeição à Monarquia, os estudantes afixaram cartazes com a palavra "República" nas fachadas das moradias estudantis.
[2]
O marco teórico adotado pelos pesquisadores da presente investigação segue duas linhas mestras. Por um lado, a teoria do sociólogo português Boaventura de Souza Santos[3] faz possível compreender o sentido de "república" de forma mais abrangente àquela desenvolvida pela teoria política moderna. Enquanto que esta, como se vê acima, centra-se na explicação do fenômeno do Estado, reduzindo a república a uma de suas formas, Boaventura nos convida a revistar este e todos os demais conceitos até então desenvolvidos tendo como centro o Estado. A produção de formas políticas e jurídicas não ocorre exclusivamente no Estado mas na Sociedade como um todo. Nesse sentido, a produção de decisões no âmbito de uma república de estudantes de Ouro Preto tem uma dimensão política e pode ter uma dimensão jurídica tanto quanto as decisões tomadas pelos governantes da República Federativa do Brasil. Ambos os tipos de República podem ser centros de produção do Direito, dependendo de três fatores: nível de institucionalização/organização, isto é, burocracia, espaço de violência, traduzido como a capacidade das pessoas serem obrigadas a obedecer as regras estabelecidas, através do uso da força legitimada por instrumentos de coerção, e pelo espaço retórico, ou seja, âmbitos de discussão e legitimação das regras, a partir do estabelecimentos de lugares comuns ou topoi[4].
Boaventura realizada, na década de setenta, uma pesquisa de campo numa favela do Rio de Janeiro à qual nomeia de 'Pasárgada'
[5]. Seu pressuposto é que nesta favela operam estratégias de resolução de conflitos paralelos ao do Estado, o que pode ser interpretado como a formulação de um Direito extra-estatal. O seu alvo é conseguir provar, assim, que as sociedades modernas funcionam sob a égide do pluralismo jurídico, ou seja, o Direito produzido no Estado - o Direito positivo - nada mais é do que um entre outros produzidos no âmbito da sociedade. Com base nos critérios acima mencionados - burocracia, violência e retórica - Boaventura compara o 'Direito de Pasárgada' ao Direito Estatal. Assim, constata que o Direito Estatal tem um alto grau de burocracia, instituições efetivas para implementação da coerção, reduzindo ao mínimo o espaço retórico. Já em Pasárgada, o grau de burocracia é reduzido ao mínimo pois não há hierarquias fixas, papéis pré-estabelecidos, ou instituições muito sólidas. O grau de violência é instável. As vezes é possível coagir atuação e o cumprimento das regras e as vezes não. Já o espaço retórico é muito amplo. A todo momento são criados novos espaços de discussão, de estabelecimento de 'topoi', de construção, portanto, de um sentimento de comunidade que permite dar legitimidade às ações implementadas pela mesma.
Boaventura reconhece a importância desse Direito extra-estatal produzido na Sociedade como uma possibilidade, em alguns casos, de democratização da Sociedade como um todo. Isto porque ao dar predominância ao espaço retórico sobre os espaços da violência e da burocracia, o aspecto criativo e inovador do Direito se faz presente da forma mais radical. Assim, o pluralismo jurídico acaba sendo um grande ganho para o Direito e para a própria Sociedade. A criatividade do "Direito social" se confronta a todo momento com a inércia do Direito estatal. Mas, ao mesmo tempo, a dispersão do "Direito social" pode ter, na eficiência dos instrumentos estatais, uma maneira de se implementar.
[6]
Da perspectiva desse primeiro referencial teórico, a pesquisa As relações de poder nas repúblicas de Ouro Preto visa investigar o tema do poder voltando-se para esses aspectos de organização da república e da articulação entre os espaços de retórica e de violência na sua relação com tal organização. O pressuposto lançado é o de que é possível compreender e estudar o Direito estatal (objeto de estudo nos cursos de Direito) pelo estudo das relações entre burocracia, violência e retórica em âmbitos específicos da Sociedade em que possa se supor a existência e formação de uma normatividade.
Nosso ponto de partida é a suposição de que as repúblicas de Ouro Preto seriam espaços de produção de "Direito social" porque apresentariam certo grau de concatenação entre burocracia, violência e retórica. Procuramos justamente investigar a presença desses elementos e seu grau de relação. Afinal, as repúblicas de Ouro Preto são lugares de produção de um "Direito social" criativo e democrático, que amplia o espaço retórico sobre os espaços da burocracia e o da violência? Ou são lugares de produção de um "Direito social" tradicional, reprodutor do Direito estatal? Mas ainda uma terceira hipótese é possível: as repúblicas de Ouro Preto não apresentariam graus suficientes desses elementos para serem consideradas centros de produção de "Direito social". Nesse caso, qual o papel exercido pelas Repúblicas?
Nossa pesquisa se centra na comprovação e comparação das duas primeiras hipóteses desde que acreditamos que as repúblicas exercem um papel na normatividade social da comunidade acadêmica e não são apenas moradias estudantis. Mas não podemos deixar de ter presente que nossa pesquisa possa vir a revelar a terceira hipótese como a mais acertada.
A comprovação ou não dessas hipóteses será obtida através de um trabalho de campo realizado conforme o segundo referencial teórico, a ser utilizado junto às repúblicas participantes da amostragem: a teoria da pesquisa-ação de Michel Thiollent.
[7]
As bases da pesquisa-ação partem de um profundo questionamento ao qual as ciências sociais têm se submetido nos últimos 50 anos e que podemos traduzir em linhas gerais e mais simples assim: como é possível a uma ciência social tratar o objeto pesquisado de forma neutra e objetiva quando tal objeto é um sujeito como o próprio pesquisador? Assim, o sociólogo do Direito não é apenas um observador externo de uma realidade alheia; ele é observador e participante. A nossa pesquisa ilustra essa tensão de forma clara pois os pesquisadores são alunos da UFOP e muitos deles são membros de repúblicas, outros, pessoas que se submeteram ao processo de seleção para uma vaga e não forma aceitos, e outros ainda, que optaram por outro modo de vida. Assim, a república faz parte do dia a dia de todos os pesquisadores, para cada um de um determinado ponto de vista.
Sensível a tais constatações, a metodologia da pesquisa-ação não visa se fundamentar em uma distante relação sujeito (pesquisador) e objeto (pesquisado), mas tirar proveito da própria tensão inerente à relação intersubjetiva (sujeito-sujeito) entre pesquisador e pesquisado como explicado a seguir. De um lado, requer sejam os vários pontos de vista já diversificados entre os próprios pesquisadores revelados e explicitados na elaboração dos instrumentos de pesquisa. Os pesquisadores utilizam seus conhecimentos pessoais e sua inserção no processo para dialogar entre si e refletir sobre a sua percepção da realidade pesquisada. Adicionalmente, os pesquisados se tornam parte ativa na discussão dos propósitos e na elaboração da pesquisa, assim como de seus resultados. Por isso, não há propriamente 'resultados' até que a sistematização de informações por parte dos pesquisadores não tenha passado pela discussão com os pesquisados.
E é que a pesquisa-ação, e a nossa pesquisa portanto, não visa o conhecimento pelo conhecimento. O fim principal de uma pesquisa-ação é levantar problemas e questionamentos a partir de uma metodologia científica que possa direcionar os sujeitos participantes para ações. Por outro lado, não se trata de um ativismo ou de intervir e dar respostas prontas. O fim da pesquisa é muito mais o de incitar o diálogo, a crítica e pontos de pauta que possam ser aproveitados pelos participantes como estímulos para mudanças ou reforço de atitudes.
O fim da nossa pesquisa é o de levantar questões sobre o cotidiano das repúblicas de Ouro Preto no que se refere a sua forma de organização interna e externa, envolvendo portanto as relações entre os repúblicanos, entre a república e os ex-alunos, entre a república e a direção da UFOP, entre a república e a cidade de Ouro Preto. Assim como, refletir sobre o processo de concatenação entre os espaços de violência/implementação e de retórica/comunicação. Este aspecto inclui a percepção de como são feitas as regras internas de organização, como são reforçadas essas regras, o que acontece quando da desobediências às mesmas, qual é e como é aplicado o sistema de sanções, etc. Esperamos que esta pesquisa possa estabelecer alguns pontos de partida para uma discussão mais abrangente entre a comunidade universitária e entre as repúblicas com vistas a uma auto-reflexão e à busca de possíveis ações (só se saberá quais ações são necessárias, se é que o são, no final do processo).
Nestes primeiros quatro meses de pesquisa temos nos dedicado a estudar os marcos teóricos assinalados, fazer uma testagem preliminar de forma a ajudar na delimitação do tema e do problema, delimitar hipóteses de trabalho, estabelecer uma amostragem e os critérios para a mesma, elaborar instrumentos de investigação (questionários, etc.) e fazer um contato preliminar com as repúblicas. A segunda fase da pesquisa se centrará na aplicação dos instrumentos de pesquisa, discussão e contato continuado com as repúblicas pertencentes à amostragem, sistematização dos dados colhidos com vista a elaboração de um diagnóstico, novas discussões em torno desse diagnóstico e, finalmente, publicação dos resultados. Esperamos contar com a colaboração da comunidade universitária neste empreendimento.


[1] Mestre em Filosofia Social e Política (UFMG), Doutoranda em Direito Constitucional (UFMG), e Professora de Sociologia Jurídica (UFOP)[1]

[2] Sobre esses precedentes históricos ver a pesquisa do Professor assistente da UFOP, realizado pelo Instituto Central de Ciências Pedagógicas: SARDI, Jaime Antonio Estratégias de Auto-regulação desenvolvidas por estudantes universitários em ambiente de exacerbação do prazer. [proad@cpd.ufop.br] Esta pesquisa foi também apresentada no Congresso Internacional de Pedagogia em Havana, Cuba, em janeiro de 2000.
[3] SANTOS, Boaventura de Sousa O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. SANTOS, Boaventura de Sousa Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez Editora, 1997.
[4] O 'topos' e os 'topoi' são terminologia utilizada pela teoria da Tópica Jurídica, uma teoria da linguagem que no Direito é consagrada por Vieweg, Esser e Perelman. Boaventura explica que: "Esta concepção procura situar-se na conhecida distinção, que tem caracterizado o pensamento ocidental pelo menos desde Aristóteles, entre o conhecimento/raciocínio apodítico, que aspira à verdade absoluta e recorre para isso à demonstração analítica, através da dedução lógica (silogística) ou da experimentação empírica, e o conhecimento/ raciocínio dialético-retórico, que aspira à adesão ao que é crível, plausível, razoável, recorrendo para isso a provas dialéctico-retóricas, isto é, à argumentação e deliberação a partir de opiniões ou pontos de vista geralmente aceites (os topoi). Segundo a concepção tópico-retórica, o discurso jurídico tem uma natureza argumentativa, visando uma deliberação dominada pela lógica do razoável em face do circunstancialismo concreto do problema, em caso algum redutível à dedução lógica e necessária a partir de enunciados normativos gerais." (SANTOS, Boaventura de Souza O Discurso e o Poder, p.6-7)
[5] SANTOS, Boaventura de Souza O Discurso e o Poder
[6] Vale observar que tais conclusão só são possíveis na leitura de texto mais recentes do autor, por exemplo Pela Mão de Alice. Na obra O Discurso e o Poder os dois Direitos se apresentam como antagônicos e irreconciliáveis.
[7] THIOLLENT, Michel Metodologia da Pesquisa-Ação SãoPaulo: Cortez Editora, 1985.

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